O que aconteceu, foi que crescemos
sozinhos entre as coisas,
por isso demos uma cara ao relógio,
umas costas à cadeira,
à mesa umas pernas robustas
para que nunca fique cansada.
Fizemos sapatos com línguas
tão suaves quanto a nossa
e penduramos línguas nos sinos
para podermos ouvir
a sua linguagem,
e porque adorámos perfis graciosos
o jarro teve direito a um lábio,
e a garrafa a um pescoço longo e fino.
Mesmo o que estava para além de nós
foi feito à nossa imagem;
demos ao país um coração,
à tempestade um olho,
à caverna uma boca
para que pudéssemos entrar em segurança.
Lisel Mueller (1924–2020) tradução de PML
*
AS COISAS
As coisas, as nossas coisas,
gostam do nosso amor;
a minha mesa gosta que nela se apoie cotovelos,
a cadeira gosta que me sente na cadeira,
a porta gosta que a abra e a feche
como o vinho gosta que o compre e o beba,
o meu lápis desfaz-se se lhe pego e escrevo,
o meu armário estremece se o abro e assomo,
os lençóis são lençóis quando me deito sobre eles
e a cama queixa-se quando me levanto.
Que será das coisas quando o homem chegar ao fim!
Como os cães as coisas não existem sem os eu dono.
Gloria Fuertes (1917-1988), in A única maneira de esquecer a beleza, poesia traduzida de Luís Filipe Parrado, Língua Morta, novembro 2022, página 154