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Miguel Torga

Miguel Torga

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DIES IRAE

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
a mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
sepultura de grades cinzeladas,
que deixam ver a vida que não temos
e as angústias paradas!

*

IMAGEM

Este é o poema duma macieira.
Quem quiser lê-lo,
quem quiser vê-lo,
venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

Floriu assim pela primeira vez.
Deu-lhe um sol de noivado,
e toda a virgindade se desfez
neste lirismo fecundado.

São dois braços abertos de brancura;
mas em redor
não há coisa mais pura,
nem promessa maior.

*

VISITA

Fui ver o mar.
Homem de pólo a pólo, vou
de vez em quando olhá-lo, enraizar
em água este Marão que sou.

Da penedia triste
pus-me o olhar aquele fundo
dentro do qual existe
o coração do mundo.

E vi, horas a fio,
a sua angústia ser
uma espécie de rio
que não sabe correr.

*

FANTASIA

Canto ou não canto o limoeiro
aqui ao lado?
Ele é tão delicado!
Tem um jeito tão puro
de se encostar ao muro
onde vive encostado…

Canto ou não canto as tetas de donzela
que daqui da janela
vejo no limoeiro?
Elas são tão maduras…
E tão duras…
Têm uma cor e um cheiro…

Canto!
Nem serei o primeiro,
nem eu sou nenhum santo!

*

LIÇÃO

Ouço todos os dias,
de manhãzinha,
um bonito poema
cantado por um melro
madrugador.
Um poema de amor
singelo e desprendido,
que me deixa no ouvido
envergonhado
a lição virginal
do natural,
que é sempre o mesmo, e sempre variado.

*

CANTILENA DA PEDRA

Sem musa que me inspire,
canto como um pedreiro
que, de forma singela,
embala a sua pedra pela serra fora…
Upa! que vai agora!

A pedra penitente que eu arrasto
tem o tamanho de uma vida humana.
E só nesta toada a movimento,
embora o salmo já me saia rouco.
Upa! meu sofrimento!
Upa! que falta pouco…

*

INSÓNIA

Só tu, musa cruel!
Só tu eras capaz
de uma tortura tão desnaturada.
Do pôr do sol até de madrugada,
o poeta indefeso
a ler um verso aceso
na lâmpada apagada.

*

SÍSIFO

Recomeça…
Se puderes,
sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
nesse caminho duro
do futuro,
dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
vai colhendo
ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
e vendo,
acordado,
o logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga (1907 – 1995). Pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, médico, escritor e poeta. A sua campa rasa tem uma torga plantada a seu lado, em honra ao poeta.

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