Ó DELÍCIA DE COMEÇAR
Ó delícia de começar! Ó manhã a nascer!
Primeira erva, quando parece esquecido
o que é verde. Ó primeira página do livro
esperado, página surpreendente! Lê
devagar, depressa demais
faz-se-te magra a parte por ler! E o primeiro jorro da água
na cara suada! A fresca
camisa lavada! Ó começo do amor! Olhar que desgarra!
Ó começo do trabalho! Óleo a encher
na máquina fria! Primeiro manejo e primeiro zumbido
do motor que arranca! E primeiro hausto
de fumo que enche os pulmões! E tu
ideia nova!
*
LISTA DOS PRECISOS
Muitos conheço eu que andam por aí com uma lista
em que está o que precisam.
O que vê a lista, diz: É muito.
Mas o que a escreveu, diz: É o mínimo.
Mas muitos mostram com orgulho a sua lista
em que está pouco.
*
EXPULSO, E COM RAZÃO
Eu cresci como filho
de gente abastada. Os meus pais puseram-me
um colarinho ao pescoço e criaram-me
nos costumes de ser servido
e ensinaram-me a arte de mandar. Mas
quando era já crescido e olhei à minha volta,
não me agradou a gente da minha classe,
nem o mandar nem o ser servido.
E eu abandonei a minha classe e juntei-me
à gente pequena.
Assim
criaram eles um traidor, educaram-no
nas suas artes, e ele
atraiçoa-os so inimigo.
Sim, eu divulgo segredos. Entre o povo
estou eu e explico
como eles enganam, e predigo o que vai vir, pois eu
estou iniciado nos seus planos.
O latim dos seus padres corruptos
traduzo-o palavra a palavra para a língua comum,
e então se descobre que é tudo pantomina. A balança da sua justiça
tiro-a para baixo e mostro
os pesos falsos. E os seus informadores vão dizer-lhes
que eu estou com os roubados quando conjuram
a revolta.
Admoestaram-me e tiraram-me
o que ganhei com o meu trabalho. E quando eu não melhorei,
deram-me caça, porém
já só havia
escritos em minha casa, que descobriram
os seus conluios contra o povo. E assim
perseguiram-me com um mandado de captura
que me acusava de opiniões baixas, isto é:
de opiniões dos de baixo.
Aonde chego, fico marcado
para todos os possidentes, mas os que nada têm
lêem o mandado e
dão-me abrigo. «A ti» – ouço dizer –
«expulsaram-te eles, e
com razão».
Tradução de Paulo Quintela
Bertolt Brecht (1898-1956) foi um dramaturgo, romancista e poeta alemão. Dizia que dentro dele lutavam o entusiasmo pela macieira em flor e o horror dos discursos do pintor de portas. Mas só o segundo o forçava a sentar-se à mesa.