1819
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Sangue Cigano

Sangue Cigano

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1819

A CARAVANA serpenteou pela poeirenta estrada nas fraldas da serra da Boneca. As carroças, puxadas por cavalos eram sete carregadas com os mais diversos utensílios que podem existir numa habitação e, sentadas por cima dos panais das tendas, seguiam as mulheres, umas ainda jovens, outras mais velhas segurando no colo crianças pequenas que baloiçavam o corpo e as cabecitas ao sabor dos saltos que as irregularidades do caminho provocava nas molengonas. Ao lado com as rédeas dos animais presas nas mãos, caminhavam alguns  homens e dois cães já velhos com aspecto de cansaço deitando fora da boca a língua seca pelo escaldante calor da tarde.

Uma lata acompanhada por diversos utensílios de cozinha pendurada num dos lados da carroça da frente, continha objectos que tilintavam e anunciavam distante a passagem da peregrina procissão.

Tinham atravessado a fronteira em Bragança vindos de remotas planícies espanholas numa sina pária, vagabunda que lhes lembra todos os dias que a pátria de um cigano é onde estão os seus pés.

Estabeleceram-se em Vimioso depois de numa caminhada nómada e sem pressa obedecendo a milenares tradições permanecendo fiéis ao espírito livre do seu povo que os fazia cumprir uma espécie de judaica e errante maldição.

O último acampamento conhecido tinha sido, até à última madrugada, o campo da feira em Penafiel mas tiveram de partir para poder sobreviver à habitual hostilidade dos seus hospedeiros. Ninguém quer ciganos por perto; os efeitos de preconceitos sem limites e perversas xenofobias hereditárias, prolongam-se de família em família e só a Régua no Douro, Vila Verde no Minho e Oliveira do Douro em Gaia, estabeleceram com eles um pacto de não agressão. Pobres ciganos, inocentes da maioria dos crimes de que são acusados, vão pagando de geração em geração o seu incondicional amor à liberdade.

A fila aparecia lá no alto  a dobar o cume da serra tendo pela frente um cenário maravilhoso que os havia de fazer parar lá ao fundo onde a mancha na paisagem é verde e o rio Douro corre serenamente. Montaram acampamento por baixo dos sobreiros que ensombravam uma zona plana à porta da taverna do Belmiro e adivinhava-se que ali iriam permanecer algum tempo ramificando os negócios pelas terras vizinhas. Veio a noite que desenhou os contornos das tendas montadas em círculo, iluminadas com foscas luzes de lampiões a petróleo e, cá fora, havia já preparativos do ascender de tradicional fogueira.

Do meio do silêncio do sombrio lugar, começou a ouvir-se o trinar melancólico de uma guitarra espanhola. Palmas e sapateados sucederam-se e anunciavam o principio da festa  enquanto alguém com mestria, dedilhava as cordas ao mesmo tempo que outro sacudia um pandeiro e um cantar dolente que fazia lembrar o vento a acariciar as desérticas planícies de Almería, enchia a noite de festa onde cá fora as mulheres vestidas de coloridos trajes, peça sobre peça, de castanholas batentes enfiadas no dedo polegar, outras agitando leques multi-cores, dançavam o flamengo transformando o ambiente como se sentissem em Sevilha, Córdova ou no bairro de La Mancha ou ainda em Úbeda ou Baeza aldeias brancas e solitárias rodeadas de olivais tão distantes daqui, exprimindo o espírito, a luta, o desespero, a esperança e o orgulho da raça Calé originária das terras difíceis de Sierra Nevada e de toda a província Andaluza.

Ao redor da grande fogueira entretanto acesa, a dança era guerreira e mourisca antiga herança que os Sarracenos perseguidos deixaram no seu último reduto em Granada e só as mulheres evolucionavam na magia da contra luz que as labaredas produziam e ouviam-se olés em uníssono quando o tocador abafava repentinamente as cordas ao instrumento e só esses sons manuais repercutiam na noite. A voz masculina do esguio e trigueiro cigano, progredia pelas trevas dentro solta, carregada de mágoa, nostalgia e saudades das terras longínquas de Espanha que tinham abandonado há muito.

Que bonitos ojos tienes.
Debajo de esas dos cejas.
Debajo de esas dos cejas
Que bonitos ojos tienes.

Os acordes firmes e melódicos compassados pela mestria do toque da mão do tocador no tampo do instrumento, atraíram o Ramiro que veio ao encontro da improvisada serenata como se seduzido pelo som harmonioso que um quente vento nocturno lhe fez chegar aos ouvidos. Ele desconhecia que nas suas veias, embora de nacionalidade genuinamente portuguesa, corria abrasador um sangue espanhol a reclamar constantemente o regresso às práticas ancestrais da sua procedência. Sangue cigano herdado em circunstâncias indefinidas, seiva que lhe alimentava o corpo moreno e parecia reconhecer os sons dos instrumentos,  as doces melodias e, como se pretendesse reviver a sua origem, ardia em lume  obrigando-o a comportamentos muitas vezes estranhos.

Ellos me quieren mirar.
Pero si tu no los dejas.
Pero si tu no los dejas.
Ni siquiera parpadear.

Cada vez mais se acentuava o entusiasmo da festa e até o próprio Ramiro, infringindo a rigidez do ritual, já bailava com Vera Lúcia uma das jovens e decerto a mais bela das ciganas do acampamento numa intimidade tal que fazia crer que os dois, já se conheciam desde o princípio da vida.

Malagueña salerosa.
Besar tus lábios quisira.
Besar tus lábios quisira.
Y dicirte niña hermosa.
Que eres linda y hechicera.

Ao fundo da tenda central, Leandro o velho patriarca assistia à dança preocupado enquanto a neta trocava olhares comprometedores com o jovem intruso que parecia fascinado com semelhante visão.

Si por pobre me desprecias.
Yo te concedo razón.
Yo te concedo razón.
Si por pobre me desprecias.
Yo no ofrezco riquezas.
Te oferezco mi corazón.
Te oferezco mi corazón.
A cambio de mi pobreza.

Ramiro já entregava o coração a troco só de um olhar da linda cigana e pouco ou nada haveria a fazer para parar a súbita afeição que nascera ali, a noite apadrinhava e prometia ir crescendo ao longo da dança pagã até se tornar perigosa. A guitarra ia marcando o compasso e a voz do cigano trigueiro era a mágoa feita cantiga no tremer das cordas vocais que prolongavam o fatalismo dos versos e enfeitavam ainda mais aquela maravilhosa noitada de sonho.

Malagueña salerosa.
Besar tus labios quisira.
Besar tus labios quisiera.
Y dicirte niña hermosa.
Que eras linda y hechiera.
Que eras linda e hechiera.
Como el candor de una rosa…

Ramiro deixou-se prender no amor de um momento por uma cigana morena de cabelos pretos e longos com uma flor de papel espetada, presos por uma fita vermelha e arrecadas douradas a pender em cascata das graciosas orelhas que o olhava na afeição de uns olhos tão brilhantes e tão negros como as mais negras e belas noites de Andaluzia desconhecendo a tirania da lei a quem Vera Lúcia jurara obedecer.

Na manhã do outro dia, debaixo do sobreiral fumegava ainda a fogueira que aqueceu a festa mas o acampamento tinha sido desmantelado e partido logo ao alvorecer levado pela nómada caravana que já serpenteava lá longe nos caminhos da serra das flores com destino a Valongo.

Leandro o velho nómada accionara a sua condição de chefe e patriarca e antes que o ardor do sangue cigano da neta evoluísse até provocar mortes, deu ordem de partir cedo e para longe onde se ecoasse para sempre o fogo daquela já maldita paixão.

Ramiro chegou ao ser dia ao sobreiral em busca da mulher que o enfeitiçara e prendera e deparou com a solidão e abandono do sítio onde pela primeira vez se deixou encantar. Não viu sequer partir a caravana que levou a sua amada e mesmo hoje, passados tantos anos, não sabe se ela é viva ou se é morta ou anda ainda vagabunda pelo mundo fora e, se lá longe, muito longe, o tenta agora esquecer como ele a recorda agora.

Do livro, Douro Inteiro

SOBRE O AUTOR:
Manuel Araújo da Cunha  (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook e Amanhecer (Poesia). Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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