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Margarida

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APETECE-ME FALAR DE TI COMO SE FOSSES AUSENTE, como se tu e eu vivêssemos longe um do outro, como que se apenas uma grande saudade nos unisse. Sabes que os seres vivos considerados humanos, temos um raro privilégio, uma terrível face negra da nossa alma que quando a deixamos tomar decisões, tende a afastar pessoas e coisas a quem amamos. É uma inconstância quase permanente, um desejo oculto de colher rapidamente tudo do campo da vida e iniciar nova sementeira. Nada nos satisfaz plenamente, trocamos o pouco que temos pela perspectiva do muito que podemos vir a ter. É uma ilusão como a tua que sempre pretendeste ser um oceano mas, nesta evidência de termos que conviver lado a lado e de mãos dadas, continuaremos a contar as nossas histórias a falar do que se passou abandonando a ideia fantástica do que podia ter acontecido. A vida é isto meu amigo, mais que a realização de sonhos, é o produto de circunstâncias conjugadas num espaço temporal que não dominamos mas a que todos estamos sujeitos. O inesperado pode acontecer e alterar definitivamente todos os projectos até aí acalentados. O melhor será viver distanciado de muitas coisas que nos rodeiam, escolher entre a ambição desmedida e o equilíbrio que gera a paz do espírito. A fronteira entre as duas é ténue devido aos constantes apelos de um mundo que tudo dá e tudo tira aleatoriamente portanto, difícil de manter inviolável. Cada época tem as suas obsessões, enigmas que há bem pouco tempo arrebatavam os ânimos e condicionavam milhões, caem depois no mais profundo esquecimento. Mas quem sou eu para te dar lições de como ser feliz com pouco? Isso tu sabes melhor que ninguém, compreendes a humanidade e só quando a natureza te inunda de mais água é que rejeitas com violência a oferta que te pode transformar em tirano. O melhor meu amigo é voltar-mos às narrativas, reconhecendo todavia as nossas diferenças mas aceitando-nos um ao outro já que não temos qualquer alternativa. O mundo em que vivemos é teu, meu e dos outros todos por isso tentemos fazer dele um espaço menos severo pintando-o com as cores do arco-íris.

O lugar de Pedorido acordou frio embrulhado num manto de neblina de um branco imaculado, lençol de puro algodão com que a Natureza acaricia quem a estima. Das serras que delimitam a aldeia nem sinal, perderam-se na nuvem gigantesca que avançou sobre ela e só um pedaço da povoação se avistava lá ao fundo recolhida na tua margem esquerda.

A manhã avançou sem pressa espreguiçando-se sobre a água e, aos primeiros alvores da tarde o sol espargiu uns raios de luz sobre aquelas almas perdidas num deserto tão longínquo da civilização que provavelmente ninguém neste mundo teria conhecimento da sua existência.

Tem campos estendidos em socalcos por uma área limitada com matos e, como num jardim babilónico, as bastas oliveiras, carvalhos, laranjeiras e alguns choupos são as únicas árvores inclinadas para o céu. As videiras que produzem o vinho americano, alinham-se em bardos perpendiculares uns aos outros até quase tocarem no rio Arda que quebra a meio a povoação e desagua ali perto por entre choupos que, perfilados, parecem grandioso exército em cerrada formação, parecendo aguardar a hora de um combate final.

A claridade alastrou enfim mostrando a soberba paisagem envolvente onde, na tua outra margem a linda aldeia branca de Rio Mau, surgia altiva debruçada sobre a tua água numa cumplicidade permitida há séculos e, já com meio caminho percorrido no céu, o astro rei principiou a aquecer medroso os povoados.

Fumegavam os matos, as oliveiras, as vides e a serras em volta eram um processo inteiro de evaporação dos cristalinos orvalhos que o nevoeiro deixou. Um cheiro acre e doce espalhou-se pelas aldeias que assistiam serenas ao evoluir de mais um dia tão igual a tantos outros de que nenhuma história fala e de que só os poucos habitantes destes ermos vão acumulando no baú das recordações como quem acautela incalculável tesouro da cobiça de olhos alheios.

Depois de demoradas actividades no recolher dos milhos lá em baixo onde uma reentrância de água aguarda o último estremecimento do rio Arda, refresca e permite o cultivo do cereal, a noite veio antecedida por um entardecer fantástico onde as cores da paisagem se modificavam em cada segundo e tu e o Arda eram fios de oiro e prata a despertar lentamente no vosso milenar leito, imperturbáveis e sossegados, sem fazerem contas à longa vida que já tinham e que haveriam de conservar por toda a eternidade.

Os melodiosos sons de música de concertina, viola e cavaquinho espalharam-se sobre a eira onde o Sebastião comandava o racho de mulheres e homens que desfolhavam espigas e os cantares ao desafio formavam o despique de nostálgica doçura. Depois veio o baile em que rapazes e raparigas evolucionavam no estrado de ardósia negra, descalços, ao ritmo da chula e do importado vira do Minho.

Margarida sentada na sua cadeira ao lado das outras via-as felizes rindo esperançosas de uma dança.

De vez em quando, num compasso entre as músicas, lá vinha um rapaz e ela de olhos suplicantes, com um alvoroço a crescer-se no peito, ansiosa, aguardava agitada o desejado pedido que a metesse no baile e a fizesse rodopiar nos braços de alguém no improvisado palco. Eles passavam de pé pela mole de raparigas expostas e, às vezes ficavam presos de olhos mesmo a seu lado numa cachopa mais atraente que ela. Apavorava-se-lhe o coração cada vez com mais força ao ver que já quase todas bailavam e ela desfavorecida pela natureza, de cara delgada e corpo imperfeito, cadavérica e desengraçada, permanecia quieta a sofrer as dores do abandono.

Dentro do peito, no seu jovem coraçãozito que pulava assustado, fervia a esperança de que por obra de um milagre algum homem a desejasse, morreria ali de tanta comoção, não sem antes o abraçar e beijar com infinita ternura agradecida da prenda de uma dança, fosse quem fosse o homem que deixasse cair um olhar sobre o seus olhos castanhos e lhe estendesse a mão que convida ao abraço.

Naquela noite, fria mas cálida de emoções em que ela parecia adivinhar mais um desgosto na sua alma estilhaçada, apareceu o Sebastião que atrasara a entrada no baile ocupado na recolha das espigas. Era um rapagão alto, de olhos verdes, de camisa entreaberta no peito a mostrar a pujança peluda da sua juventude, pareceu-lhe uma divina aparição, qualquer coisa só imaginada num sonho. As outras desinquietas pela aparência robusta do rapaz, ajeitavam os cabelos, faziam poses de artista e as mais audaciosas, sorriam-lhe de longe e mostravam a brancura das coxas trespassando as pernas joelho sobre joelho.

Ele veio caminhando de uma ponta à outra da eira e parou à sua frente e perguntou-lhe:
— A menina quer dançar comigo?

Margarida não acreditava no convite vindo inesperadamente de um homem assim pois nunca ninguém, malparecido ou bonito se aproximou dela e a convidou para bailar e, se fosse verdade, se por casualidade ele não estivesse só a divertir-se, seria o acontecimento mais importante que alguma vez lhe sucederia na vida. Como envolvida no torpor de uma ilusão, de faces coradas, deixou-se envolver pelas fortes mãos do rapaz que a conduziram levitando como uma pena por sobre toda a sua colossal emoção. As outras morriam de inveja segredando a um canto e ela feliz volteando nos braços daquele moço, o primeiro que a vinha libertar da clausura em que até aqui tinha vivido, parecia um anjo a ascender ao céu que ela tantas vezes imaginou.

A orquestra tocava e eles abraçados, rodopiavam agora solitários no meio da eira que Margarida ia transformando feliz no centro do universo durante aqueles breves minutos. Instantes encantadores, todos a olhá-la, perplexos e espantados, quase esquecidos da própria dança, submetiam-se ao inesperado e inimaginável acontecimento. Margarida perdera feiura e era agora uma mulher perfeita, a mais bela de todas, a única, a eleita do homem que todas desejavam.

Sebastião ia-lhe falando ao ouvido nas voltas e reviravoltas da dança que agora era um tango e as suas mãos fortes cingiram-lhe mais a cintura fina apertando-a contra si com força. Chamou-a de boneca linda e ela acreditou, contente e feliz, sorria com lágrimas nos olhos.

A mãe da Rosa, ciumenta, cochichava ao ouvido da Florência:
— Olha, a filha do Albertino já dança com o Sebastião. Não sei o que é que ele viu naquela esganiçada!
— Que se há-de fazer — respondeu a outra. — Há homens assim, encontram beleza onde outros só enxergam urtigas e mato!

A dança acabou e ele veio traze-la ao lugar agradecido e as outras olhavam-na espantadas e invejosas enquanto ela segurava um lacinho que apertava no peito o vestido de chita, fingindo-se ocupada para esconder a descomunal satisfação que pela primeira vez sentia na vida.

Durante o curto compasso de espera entre as músicas, ela olhava para o fundo da eira cheia de esperança e simultânea de aflição.

“Ele voltaria? Não, decerto foi por engano que a veio buscar; agora iria dançar com outras muito mais atraentes e bonitas que ela.”

A orquestra começou a tocar uma música dolente e Margarida ia entristecendo a cada acorde, quando de repente Sebastião entrou novamente na eira. Quem seria a escolhida deste homem agora? Talvez a Rosa, de todas a mais fascinante e cobiçada por muitos, também à espera como as outras de coração ferido por não ter sido a escolha daquele rapaz perfeito. Sebastião levantou os olhos por sobre todo o espaço do baile e prendeu-se a sorrir nos olhos dela.

— Ai minha mãe do céu — rezou ela apreensiva, de olhos outra vez marejados. Lá de longe, Sebastião com um dedo apontando para ela perguntava-lhe em mímica se ela queria dançar. Ela sorriu como o rosto iluminado que dizia, sim! A improvisada orquestra tocava a balsa da meia-noite e ele apertava-a contra si, enquanto ela lhe sentia o bater do coração, o calor do corpo, o sangue a ferver-lhe nas veias e a respiração quente pertinho da sua boca. Ergueu um pouco a cabeça, olhou-o na profundidade daqueles olhos verdes e depois semicerrou os dela suplicante da carícia do seu primeiro beijo. A música progredia no espaço da eira num sussurro mágico, espalhava-se pelos campos e pelo rio e os dois, já a um canto atrás do canastro que guarda as espigas do milho, embrulhados no folhelho, trocavam os fluidos que geram a vida e ela, perdida no doce devaneio, agarradinha a ele, sentiu pela primeira vez na vida a quentura de uns lábios pousarem nos delas.

O nevoeiro voltava a formar-se sobre os rios que pareciam sorrir e, como se fosse um manto branco de algodão, ia subindo lentamente as serras fazendo as aldeias de Pedorido e Rio Mau desaparecerem mais uma vez do mapa onde nunca constaram.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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