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A partida

A partida

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1820

HÁ MILHÕES de anos, quando os mundos se fundiam numa guerra astral sem precedentes, surgiram aqui vindas do nada estas duas maravilhosa correntes líquidas. Nasci à beira destes dois rios, o douro e o rio mau, cresci com eles e permiti que o meu corpo, a minha mente e o meu carácter fossem moldados na lentidão com que os dias e os anos iam passando desde a meninice e infância à juventude. Brinquei num espaço limitado a um raio de cem metros da casa onde vim à luz. Mundo pequeno esse que aos meus olhos de menino, parecia grande demais. Para lá desse cativeiro onde voluntariamente fui crescendo, pouco mais havia além das serras, das casas, dos rios e do céu. Os prédios empoleirados uns nos outros, apartados por caminhos estreitos, eram poucos resumindo o aglomerado da povoação a essa pequena cavidade abrigada das intempéries, formada após o caos inicial quase na confluência desses dois cursos de água.

Era muito raro subir a rua estreita que confluía num largo para depois atravessar a estrada e mergulhar a pique na margem do grande rio. Quando acontecia, ficava fascinado pela imensidão desse lençol de água que me surgia longe onde as vistas podiam alcançar, pelos barcos rabelos que passavam de velas desfraldadas e pela maravilhosa paisagem que se abria em frente dos meus olhos surpreendidos. Ficava nesse outeiro horas a fio a contemplar, a sentir a vida pulsar de uma maneira que nunca tinha visto nem imaginado antes.

Passavam pessoas, homens e mulheres atarefados, uns seguiam para as fainas da pesca, outros de gasómetro pendurado nas golas das casacas de ganga azul, marchavam a caminho das minas. Olhava-os um a um, assustavam-me esses rostos martirizados, marcados por cicatrizes escuras onde nenhum sorriso se abria para mim, tentava compreender as razões de tanta indiferença e alvoroço, procurava entender o porquê de semelhante correria, para onde iriam, de onde chegavam, que força os movia em direcções tão diversas parecendo autómatos sem vida e sem emoções. Que mundo estranho era aquele onde ninguém brincava, interrogava-me. Ouvia o rumor surdo que vinha lá muito debaixo das beiras do rio, risos, gritos e sons de divertimento que as crianças da escola produziam na hora do recreio. Uma secreta esperança acendia-se-me no peito e fazia-me rebuscar lá em cima onde a poeirenta estrada me aparecia súbita, um sinal de movimento inesperado, a resposta à minha permanente inquietação. Eu queria a miragem de uma motorizada que trouxesse o meu pai figura sempre ausente nesses primeiros seis anos da minha existência e que raramente aparecia e só à noite quando eu e os meus dois irmãos já dormíamos. Por que a sua terra era outra, os seus afazeres eram muitos e as actividades comerciais a que se dedicava eram vastas, vinha dormir a nossa casa mas partia de madrugada ainda com o escuro e, nós crianças, deitados na mesma cama, acordávamos com o ruído intenso do motor da bicicleta que nos fazia estremecer.

Às vezes de manhã em cima da mesa da cozinha, apareciam uns brinquedos deixados pelo meu pai, eram carrinhos de lata pintados com cores berrantes a imitar veículos que ainda não passavam por aqui. Na noite seguinte, debaixo das mantas da nossa enxerga, na escuridão, ouvia-se um ranger de folhetas contorcidas e as prendas que o meu pai tinha deixado, transformavam-se em pedacitos de chapa esmagados. A minha mãe barafustava connosco, não era propriamente uma acção de castigo, era mais o assumir da personagem de líder do bando perante o nosso desrespeito ao nosso pai:

— Nunca mais haveis de ter brinquedos, anda o vosso pai a gastar dinheiro em coisa bonitas para vocês desfazerem numa noite.

Estava feito o sermão, a causa e o efeito sujeitos à cegueira da justiça, o castigo pouco provável, o propositado ignorar das razões que nos levaram a cometer semelhante crime. A minha mãe era uma pessoa inteligente com um índice de cultura muito acima da média para a época, sabia ler, escrever e contar e já tinha vivido na cidade do Porto terra onde poucos tinham posto os pés durante uma vida e por isso sabia também como nós quais foram os motivos da destruição dos carritos de chapa. Eram os mesmos que os dela com a diferença de que ela nunca teve uma boneca que a ajudasse a sonhar e o seu tempo das brincadeiras inocentes já tinham terminado há muito. Passou por ela, ignorou-a como ignorou todas as crianças do seu tempo que cresceram sem pão, sem brinquedos e sem afectos. À noitinha quando se sentava na cozinha cansada e todos juntos rezávamos o terço, reparava que o seu olhar divagava por um mundo onde decerto já tinha sido feliz, certamente imaginava-se pequenina a brincar à beira do ribeiro tal qual eu me imagino agora.

A pesca era nesse tempo, a par com a actividade mineira que se desenvolvia na outra margem do douro, a razão maior da existência desta e de outras pequenas aldeias perdidas no meio do nada.

Um dia, seguindo os meus pais que finalmente resolveram unificar os negócios, emigrei para uma outra povoação igualmente pobre e isolada entre o rio e as serras. Saímos ao alvorecer da casa que nos acolheu e viu nascer. Um carro puxado a bois levava os apetrechos do nosso lar perdido, armários, camas, mesas, cadeiras, loiças e panos. Os mais pequenos seguiam em cima das trouxas formadas por mantas e lençóis, a minha mãe calcava a pé o pó da estrada e, à medida que o carro se afastava, os seus olhos cor de mar marejavam-se de lágrimas. Era enorme a minha dor mas nada que se comparasse com o sofrimento dela ao ver o seu jardim acabar para sempre. Nunca me hei-de esquecer desse dia trágico, ia viver com o meu pai mas o meu mundo pequenino, desfazia-se atrás de mim irremediavelmente.

O rio, as árvores, as casas, os meus amigos de então estendiam-me as mãos nessa despedida enquanto os meus dois irmãos que mesmo não compreendendo a dimensão da tragédia que se abatia sobre a família desfaziam-se em choros a meu lado. Foi doloroso de viver esse momento mas a maior de todas as dores já eu a tinha sofrido de véspera quando mataram a Farrusca, a minha cabra que não tinha lugar na nossa nova habitação. Nesse dia perdi tudo o que consegui amealhar durante os meus primeiros seis anos de vida. A minha ligação a esse animal, era mais forte que tudo o possível neste mundo. Era um apego quase indestrutível, um laço que nem a morte conseguiu desfazer. Ela tinha-nos dado o seu leite generoso, ajudou-nos no difícil processo de sobrevivência em troca de milho e da minha inocente e descomprometida afeição.

Fui o seu guardador, companheiro de muitas horas passadas à beira dos rios em que ela pastava e eu assistia à passagem dos barcos, sentia os rios correr enquanto imaginava como seria o mundo escondido por detrás das montanhas.

Partimos muito cedo, o dia despontava sobre os rios e sobre as serras mas dentro do meu peito, uma espécie de noite ia tomando conta de tudo. A perda nascia ali e iria ficar a doer dentro de mim para sempre.

Por esse pedaço de terra onde a minha família paterna era natural, permaneci alguns anos da meninice e juventude. Saí de lá para servir na marinha em Lisboa onde permaneci dois anos em contínua formação, depois embarquei para Moçambique onde a guerra me passava pelas mãos todas as noites no decifrar de mensagens que falavam de mortos e feridos. Foram vinte e quatro meses a viver numa cidade deslumbrante que emanava as fragrâncias dos perfumes africanos e me fascinou como nenhuma antes o tinha feito. Um dia regressei à minha origem, aos locais onde deixei presa a amarra da âncora que me segurava ao mundo, aos sítios onde o meu sangue corria a céu aberto misturado com a água barrenta do rio Douro.

Sempre desejei percorrer os caminhos da minha infância, abeirar-me do antigo ribeiro e permitir as lembranças de um tempo que sei não voltar mais, porém só o fiz ao fim de trinta anos contados desde o dia em que pela última vez mergulhei nas suas águas. O que eu sentia era medo, o terror de me encontrar sozinho e desprotegido num mundo onde fui feliz numa época, no que me transformei, a constatação das irreparáveis perdas que sofri desde então, o assombro tremendo das saudades que iria sentir e de saber que todos os que já perdi, estavam nesse presépio desfeito à minha espera para me interrogar sobre tão infame deserção.

Hoje, nunca hei-de saber o porquê de ser hoje o dia em que decidi visitar esse curso de água por que o coração tem recantos onde a maioria de nós jamais consegue entrar e, nesse arrebatamento que não podemos controlar, ele abre de par em par as portas dos misteriosos lugares da mente onde se perfilam intactas as imagens queridas que ele acautelou como quem defende pedras preciosas da cobiça do mundo, a tremer percorri a pé os caminhos desses tempo de plena felicidade.

O antes e o depois enlaçados num estranho bailado que magoa.

Antes, éramos tantos a brincar nas águas deste maravilhoso rio. Rapazes e raparigas, crianças descalças, sem roupa que cobrisse e agasalhasse a fragilidade dos nossos corpos pequeninos. Rostos inocentes que espalhavam sorrisos, corações que palpitavam a candura das coisas mais simples da vida enlaçados à natureza que extasiada nos acolhia num abraço de suprema ternura.

Olho-te hoje velho curso de água da minha meninice e no reflexo do teu espelho líquido, encontro o meu pião, a minha mãe, o meu pai, o meu irmão Hélder, a minha cabra farrusca e todos os meus amigos desses tempos a sorrir-me como tu me sorris agora.

Eu sei que o tempo empalideceu as flores silvestres que enfeitavam as tuas margens e fez irreparáveis estragos em ti e em mim e que, estes olhos que te contemplam neste momento de redenção, já não brilham com a imensa intensidade desses dias antigos, mas reconheço todavia em ti o berço que me embalou, a água pura que impregnou e fez valer o sinuoso percurso dos meus dias. Nem palavras mais me sobram para te dizer do quanto amor que te dedico, nem o coração me deixa afogar nas tuas águas as mágoas que desde então suportei, mas neste silencioso declinar da minha vida, regresso ao teu leito que um dia me acarinhou e, ao ver a minha imagem de agora espelhada nesse teu reflexo mágico, reconheço-me e cedo a uma lágrima que dos olhos me aparece e é tão sincera e pura como puros são os sorrisos de todas as crianças de ontem e de hoje que foram descuidadas e livres e continuam a ser felizes contigo e te guardam para sempre na lembrança.

— Manel!

Afigura-se-me na ilusão deste momento a voz daquela santa a chamar-me lá em cima à beira da ponte. Olhei e vi-a tão nitidamente como nesse tempo, sem rugas, esbelta, linda e feliz a chamar por mim. Corri desvairado e nu pelo caminho acima e ela secou-me o corpito molhado que tremia com o avental de chita às florinhas e depois seguimos os dois, de mão dada a caminho de casa.

Desvaneceu-se-me a visão, despertei do sonho e lá em cima à beira da ponte não estava ninguém à minha espera.

Nesse instante da visão, apeteceu-me dizer-lhe o que nunca fui capaz de transmitir por palavras. Palavras, apenas palavras que na sua simples ordem alfabética poderiam ter transformado tudo entre nós dois. Recusei a lucidez que me mostrava a realidade, quis de volta o meu sonho e nesse torpor maravilhoso soltei o grito que me sufocava:

— Mãe, eu precisava tanto de te ter aqui à beira do ribeiro, olha sou outra vez pequenino, sinto frio, estou a tremer, tenho o corpo molhado, seca-me com o teu avental de chita às florinhas minha mãe e depois dá-me a tua mão e leva-me outra vez para a nossa casa.

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011 e fotografia de José Rui Correia

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