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Rua da Estrada do homem invisível sentado

Rua da Estrada do homem invisível sentado

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DESCANSADO que estava na Rua da Estrada, não me ocorreria pensar que ia tropeçar numas curtas e estimulantes palavras de Michel Serres[1] acerca do assunto asfáltico. O homem é uma autoridade universal na filosofia contemporânea e está tudo dito.

Dizia ele que no antigamente se sabia onde estávamos, onde íamos, de onde vínhamos e que caminho se fazia. Citando Leibniz, o às iluminado da matemática, para tudo devia existir uma situação óptima, calculada a partir de condições concretas, mesmo nos caminhos do mar onde tudo parece menos “concreto” do que na terra – a direcção dos ventos, as reservas de energia, as correntes, a altura das vagas, as previsões do tempo…, tudo isso nos retira aquela impressão poética de que não há caminho único no mar e que, por isso, tudo são caminhos. Nada mais errado; até as condições batimétricas contam para uma coisa tão abstracta como o caminho da propagação do som e por isso são infinitos os dispositivos e regras para bem navegar segundo rotas conhecidas livres de icebergues e colisões.

Assim parece a estrada com toda a clareza do seu traçado e da rede a que pertence. Escreve Serres que uma estrada é uma caixa alongada, túnel ou pérgula, na qual circulam pequenas caixas fechadas; por essas caixas percorremos redes extraordinárias, expandimos os nossos pequenos mundos quando verdadeiramente viajamos atentos e curiosos, ou, inversamente, nos fechamos indiferentes nas pequenas caixas móveis onde replicamos esse pequeno mundo enquanto o outro passa a correr pelo embaciamento da nossa distracção. Fora do túnel, multiplicam-se outras caixas onde podemos instalar os pequenos mundos e interconectá-los entre si. Chamam redes globais a essas infinitas ramificações, uma forma de distribuir informação local por muitos locais; como um eco, deslocamo-nos entre muros repetindo sons mas não descobrimos nada, diz M. Serres a propósito dos viajantes corporativos.

E mais diz: da auto-estrada de Descartes – o mundo percorrido através de racionalidades lineares pré-determinadas – não se vislumbra nada do que se passa em volta; em contrapartida, pelas tortuosidades dos caminhos de cabras pode-se passar por tudo o que queremos conhecer. Essa espécie de errância é completamente diferente da frieza do olhar da planta de interior que, através da janela onde está posto o vaso que a encerra, percebe a paisagem como um simples pano de fundo de onde às vezes vem a luz do sol. Serres acrescenta a imagem, diversificando a botânica, substituindo a planta de interior por uns legumes na frente de um televisor.

Que longe estamos da Rua da Estrada… Vou atravessar o asfalto e voltar a sentar-me no sofá. Isto não é a estrada de que fala Serres para chegar ao colapso dos ecos emaranhados na rede; nem a Auto-estrada de Descartes, o que dizia “penso logo exausto” e por isso andava sempre à procura de uma cadeira ou sofá cor-de-laranja. Do que mais gosto na Rua da Estrada é da contingência, do imprevisto (não é o mesmo que o sinistro), dos muitos cruzamentos e bifurcações, da possibilidade de exercitar a alma e o discernimento.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1]Michel Serres (1996), Sortir des réseaux… entretien avec Michel Serres, Cahiers de Médiologie, N°2  Qu’est-ce qu’une route?, pp.247-255.

consultado em Março de 2017 em http://mediologie.org/cahiers-de-mediologie/02_route/serres.pdf

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