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Omeletes sem ovos

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OLHOU o céu, deitado de costas, na areia da praia, chão firme. O sol desapareceria dali a pouco tempo, teria de pôr-se a caminho de casa, quando a noite caísse a canada tornar-se-ia quase invisível. Aspirou a brisa marítima, suspirou e apoiou-se nos cotovelos. Quis aceitar aquele momento mas sentiu-se indigno, perceber a beleza trazia-lhe culpa, preferiu fechar os olhos.

– Angola?
– Sim.
– Mas filho… é preciso ires para tão longe?
– Sou um simples instrumento da vontade de…
– Sim, eu sei.

Deixou que o calor lhe invadisse o corpo, sob a árvore que acolhia os mais velhos, abandonou-se à lassidão da infância perdida. Imagens da universidade assombravam-lhe os sonhos, a travessia atlântica rumo à descoberta da relatividade, a experiência da inferioridade adquirida na chegada à metrópole. Abriu os olhos para fugir daquele tempo, preferiu sentir-se universal e justo – combatente.

– Quem com ferros mata…
– Isso são ideias do colonizador.
– O sangue não apaga o passado.
– Mas vai transformar o futuro.
– …

Os gemidos da vaca rompiam o silêncio da noite, o vento ausentara-se como que por milagre mas o som propagava-se. Eram tons de chamamento, a tradição obrigava à separação da cria, três dias após o nascimento, a progenitora clamava. Um lamento, pensou, os animais também se lamentam, talvez sofram. Tal possibilidade foi um relâmpago a iluminar-lhe o pensamento, fugaz. Sem tormenta.

– Um telegrama.
– Da América?
– Não.
– Deve ser engano.
– Não, são notícias da guerra.

A luz parecia baça, a manhã cinzenta impunha-se até ao interior da sacristia, a temperatura agradável da divisão opunha-se ao frio invernoso do exterior. O mundo para lá das paredes seculares. O real. Esse. Olhou para a mulher sentada à sua frente, rosto vazio e olhar transparente, debitou as razões comuns para justificar-lhe o sofrimento, invocou argumentos divinos.

– Não quero saber.
– São pessoas como nós.
– Não.
– Somos todos filhos de…
– Essa gente não reza como nós.

O guerrilheiro pousou a arma no chão, terra vermelha ensopada em água, sangue frio. Sentiu as roupas molhadas coladas ao corpo, uma segunda pele curtida pelo mato, as gotas grossas desenrolaram-se no seu rosto mas a expressão inerte persistiu. O outro soldado copiou-lhe o gesto e depositou a sua arma no chão, a farda coberta de lama e cinza – impressões de combate. Fitaram-se.

– Houve uma revolução.
– O que é isso?
– Acabou a guerra, vamos ser livres.
– Livres?
– Podemos ser donos do nosso destino.

A sala de conferências cintilava artificialmente, a pausa para café convidou os participantes à reunião na cafetaria. Música ambiente, tépida, emprestava à situação falsa serenidade: sob a película dourada da cultura académica, adivinhavam-se ferozes batalhas. Uns comentavam as comunicações sobre as descobertas, outros apontavam o cunho fraterno da lusofonia, poucos insistiam num substrato colonial.

– Fomos colonizadores e assassinos, caramba!
– Os tempos eram outros…
– Continuaremos, portanto, paternalistas.
– Não seja ingénuo, pensa que o pós-colonialismo interessa à pessoa comum?
– Talvez interesse à pessoa humana, não?
– Jogos de palavras? Esperava outro tipo de argumentação.

Por M. Lisboa autora do blog poeta?desacordo

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