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Reabilitar palavras com Bento Amaral

Reabilitar palavras com Bento Amaral

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PODE um tetraplégico ter uma vida normal? Bento Amaral garante que é possível, todos os dias. Enólogo reconhecido, campeão do mundo de vela adaptada, amante do mar e da neve, homem de muitos sentidos, conta como sobreviveu ao acidente que em 1994, tinha apenas 25 anos, lhe mudou a vida. Para melhor, garante. E diz-se feliz e em paz.

Escreveu um livro chamado Sobreviver, em que conta a sua vida desde o acidente que em 1994 o deixou tetraplégico. Faz conferências sobre a sua vivência pessoal. Qual é a pergunta que mais lhe fazem?

_São duas, duas perguntas de incredulidade. Primeira, se consigo mesmo ser feliz apesar de estar numa cadeira de rodas e, segunda, como é possível não ter passado pela fase da revolta.

Nunca se revoltou?

_Não, não passei por essa fase e sinto até que, por isso, a minha história perde alguma credibilidade. Mas é a verdade.

Que explicação encontra para ter sido assim?

_O amor e a dedicação da família e o acompanhamento médico, seguramente. Ter, também, um objetivo exequível a curto prazo, fazer a cadeira que me faltava para acabar o curso. Mas não terá sido só isso. Confesso, não sei explicar.

E pode dizer que é hoje mais feliz do que era antes do acidente?

_Entendendo a felicidade como um estado, mais do que momentos de grande alegria, sim, sinto-me mais feliz atualmente e mais satisfeito com a minha vida, provavelmente por me aperceber de que tenho uma visão mais global do que é viver, sofrimento incluído, e sentir-me mais em paz com as dificuldades que a vida nos traz.

Sendo uma figura com destaque mediático, recebe pedidos de ajuda e pessoas com casos de vida semelhantes?

_Recebo em média um caso concreto por semana. E essas histórias são tão ricas que aprendo muito. Não há muito tempo, através de um fisioterapeuta amigo, soube de um rapaz que decidiu confinar-se a um quarto por não conseguir aceitar a condição física. Acontece com frequência, as pessoas fecham-se nelas próprias e é meu objetivo dizer-lhes que a mudança está nelas próprias e que só depende delas. O meu caso prova isso mesmo.

Sente que gera à sua volta alguma expetativa?

_Sinto e esse é um problema porque eu não faço milagres. Na maior parte das vezes até me sinto bastante impotente. Mas recebo ecos positivos com regularidade. O ser humano só dá conta dos seus recursos numa situação de perda. Alguém que está desempregado, alguém com dificuldades financeiras, desanima e desespera não se apercebendo de que tem um recurso, a mobilidade física, que eu, por exemplo, não tenho.

As especificidades motoras precisam também de outro tipo de recursos. Os financeiros. Como motivar alguém que está preso a uma cadeira de rodas e a uma pensão mínima?

_Sim, os problemas motores obrigam a um grande disponibilidade financeira e deveriam merecer outros apoios. Países há em que alguém nas minhas condições físicas tem direito a um cuidador a tempo inteiro. E isso faz toda a diferença. Em 1997, recebia do Estado um apoio inferior ao ordenado mínimo nacional. Quando nessa altura surgiu a minha primeira oportunidade de emprego, hesitei entre perder um apoio para toda a vida ou um emprego que poderia durar apenas dois ou três meses: arrisquei mas o meu caso é muito particular, porque para além de ter trabalho tenho a possibilidade de dar trabalho a alguém que me ajude. Posso fazer alguns descontos especiais no IRS e não sei se precisaria de muito mais do que isso. Sinto-me completamente integrado apesar de ter gastos muito superiores aos de uma pessoa sem dificuldades físicas.

Em fisioterapia, por exemplo. Com que regularidade faz fisioterapia?

_Infelizmente, por preguiça e por incompatibilidade de horários, não faço a fisioterapia que devia e é essencial. O incentivo estatal à integração das pessoas com deficiência é mínimo mas, como disse, não o peço para mim.

Para além da família tem a ajuda diária de um cuidador.

_Tenho o privilégio de poder contar com o Sr. Alberto que me acompanha há 15 anos em todos os meus dias laborais. Ajudando-me a arranjar de manhã, ficando comigo até ao fim do dia. Após estes anos em conjunto, consegue entender os meus estados de espírito, adaptando-se a eles. E tem uma grande qualidade: a discrição. Muitas vezes acaba por ouvir conversas privadas, que não comenta nem divulga.

Insisto: quando passa a mensagem de que se pode ser muito feliz numa cadeira de rodas tem em conta que nem todos têm os seus recursos financeiros?

_Compreendo a questão e é verdade que nem todos os tetraplégicos têm a minha qualidade de vida. Mas ao transmitir o meu conceito de felicidade não estou a dizer que temos todos de ser campeões disto ou daquilo. Apenas, a cada um, que tente com o que tem ao alcance dar a volta por cima. E dou o meu testemunho: durante os dois anos em que estive desempregado tentei sempre aproveitar o tempo para fazer o que gostava, como ler ou ver televisão. Gostos que eram anteriores ao acidente, até.

Independentemente do amor familiar, há tetraplégicos que não têm sequer quem os tire diariamente da cama.

_Eu sei e isso é assustador.

É mais fácil reagir à adversidade quando se vive numa bolha de conforto, concorda?

_Basta recordar as pessoas que estavam ao meu lado, nas camas de hospital, para o perceber. Sinto-me um privilegiado, quer do ponto de vista das relações humanas quer do ponto vista financeiro. Pude tirar um curso, tenho emprego, fiz vela, esqui, muito do que me dá prazer está ao meu alcance. Tive todas essas oportunidades, é certo, mas também é verdade que soube aproveitá-las. E é isso o que proponho: aproveitemos as oportunidades e os recursos que temos.

Lutar por mais e melhores apoios para os que precisam tem sido uma das suas preocupações?

_A minha intervenção cívica tem passado mais por mostrar que apesar das dificuldades motoras é possível ter uma vida normal. Através do meu testemunho, luto para que outros possam ter uma vida melhor. No que diz respeito à pergunta, sei que não tenho feito o suficiente.

Escreve no Sobreviver que o preconceito é um problema do preconceituoso e não do alvo do preconceito. Em que situações sentiu mais de perto a discriminação?

_É muito importante perceber que o problema não é nosso mas de quem discrimina. Posso dar um exemplo: no ano passado, num restaurante, perguntaram à minha mulher o que é que eu queria comer.

Que resposta levou o empregado do restaurante?

_«Pode perguntar-lhe que ele fala.»

E o Bento é um homem preconceituoso?

_Tento não ser.

E antes do acidente?

_Antes do acidente era preconceituoso. O preconceito vem da falta de convívio com a diferença. Antes do acidente convivia muito pouco com a diferença. Era capaz de pensar que ninguém se interessaria por uma pessoa numa cadeira de rodas. Eu, nessa altura, seria incapaz de me interessar. De resto assustava-me muito a diferença em pessoas com traumatismo craniano, por exemplo. A verdade é que hoje em dia lido muito melhor com quem padece de senilidade precoce ou foi vítima de um traumatismo craniano porque ao longo dos seis meses de hospital convivi diariamente com pessoas com esses problemas. Convivência que me enriqueceu. Passei a ter uma vida mais rica.

Acha-se hoje melhor pessoa do que antes do acidente?

_Acho-me hoje uma pessoa mais rica. Antes era uma pessoa mais ligeira. A necessidade de procurar a essência e o sentido da vida sempre a tive mas, em simultâneo, não nego que era um bon-vivant. Nasci numa família tradicional, fui educado na fé católica mas em determinada fase da minha vida, estando eu na área das ciências, comecei a questionar a existência de Deus. Não me parecia ser necessário à existência do mundo.

Reconciliou-se com Ele depois do acidente. Um reencontro difícil?

_Foi uma procura. Li muito, documentei-me sobre outras religiões, procurei e reencontrei.

Deus ombro ou peso da responsabilidade?

_Somos as mãos de Deus na Terra. Jesus morreu na cruz, e eu, acreditando num Deus que morreu numa cruz, não posso estar à espera de que Ele facilite a minha vida humana. Peço-lhe, sim, que me ajude a transcender. Deus ombro e Deus exigência e responsabilidade existem no dia a dia e eu vou buscar força e sentido para a minha fragilidade à oração.

Em algum momento pediu a Deus a cura?

_Nunca lhe pedi uma cura física. Não oro para isso mas sim para que me dê forças para responder ao desafio de vida que me propõe.

E qual é esse desafio?

_Que apesar de a minha vida estar limitada pelo infortúnio vale a pena viver e ter coragem para isso. Casei com a minha mulher há seis anos e ela não se lembra de me ver acordar desanimado.

Diz no seu livro que Deus não queria o acidente. Crê, no entanto, que o sofrimento, a dor, redimem?

_Não posso crer que Deus queira tal sacrifício. Mas é verdade, o sofrimento ajudou-me a encontrar um sentido para a vida e a purificar o sentido das coisas, levando-me a distinguir o acessório do essencial. Deus deu-me força para retirar o melhor da minha vida.

Basta ler o seu livro para perceber que tenta reabilitar a palavra amor. Tarefa difícil nos dias de hoje?

_Encara-se essa palavra com muito preconceito sobretudo quando falamos para uma plateia masculina. Mas eu não tenho medo. E há que a purificar. Acho que é meu dever reabilitar algumas palavras. Amor é uma delas, mas há outras. Deficiente ou paralítico, por exemplo.

A expressão «pessoa portadora de deficiência» incomoda-o?

Não me incomoda, mas a deficiência não é descartável. A Bíblia usa a expressão paralítico, depois passou a usar-se a palavra deficiente. Agora acha-se que dizer «pessoa portadora de deficiência» atenua a carga. Porquê? Porque há um preconceito relativamente aos outros dois termos. São esses preconceitos que combato.

Como reage uma plateia de quadros de uma empresa à sua mensagem?

_Apesar de se preferir o sucesso pessoal e profissional, noto que se procura também um sentido para a vida. Mesmo que muitos não o saibam, é aí que o amor entra.

O amor entrou na sua vida quando menos esperava e no livro dedica um capítulo a Carmo, a sua mulher. Disse há pouco que antes do acidente achava impensável que alguém fosse capaz de se interessar por uma pessoa numa cadeira de rodas. Custou reconhecer o quanto estava enganado?

_Foi uma agradável surpresa. È muito bom saber que há pessoas com uma grandeza superior à minha. A Carmo tem a sabedoria que não vem nos livros. Ao lado dela sinto-me mais completo e realizado.

Faz no seu livro várias referências cinematográficas com muito sentido de humor. É cinéfilo?

_Gosto de cinema e vejo muito menos do que gostaria. Depois do acidente, estive dois anos sem trabalho, altura em que me obriguei a uma disciplina, acordando todos os dias, tal como o meu irmão, às 07h30. Nesse tempo – e mais uma vez aqui está o meu lado de privilegiado – os meus irmãos traziam-me diariamente do clube de vídeo um filme e por isso a maioria das referências cinematográficas referem-se a essa altura. Atualmente, eu e a minha mulher não vamos muito ao cinema. Infelizmente.

Viu Mar Adentro?

_Duas vezes, e já o comentei em conferências.

A lesão de Ramón Sampedro parece ser mais grave.

_No filme parece que é assim mas a lesão é muito semelhante. Ele conseguia mexer o indicador e o polegar, eu não consigo. Mas a decisão de ficar numa cama acabou por limitá-lo ainda mais.

Compreende quem ao contrário de si não aceita a tetraplegia e prefere morrer?

_Respeito mais do que entendo. Quem entende que a morte é melhor do que a vida só pode estar numa situação desesperada, de sofrimento enorme. Respeito mas gostaria de conseguir transmitir-lhe outra visão, outro entendimento.

Se respeita, aceita que alguém ponha fim à própria vida?

_Respeito o sentimento de quem quer morrer porque está numa situação de sofrimento. Mas vamos ver: um adolescente que deseja a morte porque a namorada o deixou ou porque não entrou na faculdade precisa de apoio de forma a perceber que apenas está a viver uma fase da vida. Em situações limite como a minha, há uma fusão de fases. Primeiro, a de incredulidade – «isto não me aconteceu» -, depois, a da revolta – que eu não tive. Eu tento mostrar esse outro caminho porque acredito verdadeiramente que é possível.

O que recorda do acidente?

_Recordo um dia de sol, muito bonito e quente, recordo o mergulho e, a partir daí, a incapacidade de me mover e de sentir. A perda da sensibilidade é tão perturbadora quanto a de movimentos. Lembro a chegada ao hospital, os momentos que antecederam a operação sabendo já que poderia ficar assim para o resto da minha vida. Mas essa parte passou-me um pouco ao lado: as dores eram tantas que só pensava em ser operado o mais rapidamente possível.

Porquê a si?

_Fiz essa pergunta na noite seguinte à da minha operação. E a resposta foi clara: não me aconteceu mais e pior do que a tantos outros, tantos e tantos que sofreram e morreram em campos de concentração. Acidentes como o que eu tive acontecem todos os anos. Há mais pessoas a sofrer o mesmo acidente do que a ganhar o euromilhões. Contudo, há mais gente a pensar que vai ganhar o euromilhões do que a pensar que vai ter um acidente destes.

Números – quantos acidentes semelhantes ocorrem anualmente em Portugal?

_Em 2012 aconteceram 17 casos. Refiro-me apenas a tetraplegias provocadas por mergulhos. Mas, diz uma amiga, aceitamos as coisas boas sem as questionar e questionamos as más sem as aceitar. Resultado, andamos às voltas dentro de nós, a perguntar porquê a mim, porquê a mim, em vez de tentar viver o melhor possível. Sejam as limitações físicas ou de falta de dinheiro. É claro que a qualidade de vida será, na maioria dos casos, menor do que a minha, mas se conseguirmos de alguma maneira fazer um bocadinho mais do que é suposto já é muito bom.

Defende, portanto, que se relativize. Mas não é um relativista.

_Não sou. Relativo é tudo o que não é essencial à realização humana. Valores absolutos são o amor, a vida e a liberdade. Apesar de estar numa cadeira de rodas, sinto-me uma pessoa mais livre do que muitos que têm liberdade física.

Por que razão diz isso?

_Quando a liberdade de movimentos, a liberdade exterior, é muito importante, algo não vai bem dentro de nós. Mandela, por exemplo, foi sempre um homem livre. Estar preso a uma cadeira de rodas levou-me a um melhor conhecimento de mim próprio. Dantes, era uma pessoa mais limitada e, portanto, menos livre.

A que ritmo se vive sobre quatro rodas e que relação tem com o tempo?

_Costumo dizer que a minha vida gira sobre rodas. Atendendo a todas as atividades, poderia ser tentado a que um dia tivesse mais que 24 horas. O tempo, o que ele faz de nós e o que nós fazemos com ele, sempre me fascinou. Preocupo-me em usar o meu tempo da melhor maneira.

No livro refere que a cadeira de rodas tem sido um bom marketing. Por onde começaria uma autobiografia: pela tetraplegia ou pela sua profissão e conquistas desportivas?

_A enologia e a vela são muito mais importantes do que a tetraplegia. Raramente me recordo da tetraplegia. Claro que todos os dias sinto a dependência, posso até, por causa dela, deixar algumas coisas por fazer, mas não são seguramente as coisas importantes. Tantas coisas a que dava importância e agora não dou nenhuma.

Por exemplo?

_Um passeio sozinho. Não posso fazê-lo mas nem por isso deixo de ter tempo para a minha introspeção.

No Sobreviver tem um capítulo a que chamou «Palavras com sentido». Casamento, dor, liberdade, mar, amor, são algumas das trinta escolhidas. Em contrapartida, que palavra aconselha a riscar do dicionário?

_Desespero. Por momentos também eu não vi sentido para o que estava a acontecer-me mas não perdi a esperança. Bania ainda as palavras egoísmo e comparação. Comparar é um verbo que me toca muito porque dele vem a maior parte dos nossos problemas. Comparamo-nos com os outros, com o que já fomos, e ficamos invariavelmente descontentes.

No livro mostra que é capaz de brincar com as suas limitações. Como reage quando ouve expressões como «anda lá», por exemplo?

_Acho graça e não posso deixar de sorrir. Recentemente, na praia, tirei os óculos para cumprimentar uma senhora. E diz ela: «Não se incomode, deixe estar, não se levante.» Fartei-me de rir.

É licenciado em Engenharia Alimentar. De onde surgiu a ideia desse curso numa época – 1989 – em que era uma área muito pouco divulgada?

_A ideia de fazer esse curso surgiu na minha fase bon-vivant, malograda a hipótese, por falta de média, de seguir Engenharia Química. Devo dizer que gostei muito do curso.

E o gosto pelo vinho?

_A paixão pelos vinhos surgiu em meados do curso. Decidi então fazer um Erasmus, que foi decisivo. A partir daí soube que a enologia seria a minha vida profissional.

Há uma tradição familiar na viticultura?

_Um bisavô teve uma quinta no Douro mas a minha paixão não tem que ver com essas raízes. O gosto pelo vinho está relacionado com outra paixão minha: a comida. Sou uma pessoa bastante sensorial.

Enogastronomia: a descrição de um jantar perfeito ou o que gostaria de comer hoje ao jantar?

_Foie gras com cebolinhas reduzidas em vinho do Porto, acompanhado com um vinho do Porto branco velho. Seguir com um prato de caça – gosto muito de perdiz à Convento de Alcântara, recheada com foie gras e trufas – servindo um vinho tinto evoluído, um vinho do Douro, um Bordéus ou um tinto de Piemonte. Para final de refeição, um prato que temos feito lá em casa com alguma regularidade: fondant de abóbora, com mousse de requeijão e amêndoas torradas, que também vai muito bem com o Porto Tawny 20 anos, ligeiramente refrescado. Esta é para mim uma grande refeição.

É um frequentador de restaurantes?

_Tenho este lado sensorial, gosto de procurar novos sabores e, portanto, vou muito a restaurantes. De qualquer maneira, temos na minha família uma tradição gastronómica que passou para a minha irmã e, agora, para a minha mulher.

Em casa, gosta da acompanhar, supervisionar, a preparação dos pratos?

_Gosto e faço-o. A minha intervenção vai desde a conceptualização do prato à prova, passando pela escolha dos ingredientes. É um gosto inato se bem que estudo e leio muito sobre alta-gastronomia.

O melhor acompanhamento para o vinho do Porto?

_Os mais clássicos são talvez os melhores: chocolate e o queijo Stilton.

A ideia de que vinho tinto não casa com peixe é verdade ou mito?

_É um mito. Assim como é mito a ideia de que um vinho branco não deve acompanhar carne. Atualmente, a alta-gastronomia faz associações sobretudo com vinhos brancos – e curiosamente rosés – procurando pratos mais leves e uma maior harmonização dos vários sabores no prato.

Comparando com os mercados internacionais, há atualmente bons vinhos em Portugal?

_Portugal está na primeira divisão, com capacidade para, de vez em quando, ganhar a liga dos campeões. Mas há que não perder de vista o que se faz lá fora. É essa atitude que tento passar aos meus alunos.

Nos vinhos, o barato é mau?

_O barato é razoável. O bom é caro e há caro que não é bom.

Ensina na Universidade Católica, dá aulas de provas de vinhos e é o responsável pela cadeira de Análise Sensorial. Num bom provador há mais trabalho ou talento?

_Oitenta por cento é resultado da aprendizagem, e mais, raramente encontro uma pessoa completamente inapta para fazer uma prova de vinhos. Diante de uma caixinha com aromas, não há quem diga que não sente o cheiro. O problema começa quando se pede a identificação dos aromas. Problema que só se resolve treinando a memória olfativa, uma memória que é muito usada pelas crianças e que se vai perdendo ao longo da vida. Não é por acaso que diante de certos aromas vamos buscar recordações de infância.

Há bons provadores em Portugal?

_Há. Há até um estudo comparativo em que se afirma que os provadores portugueses têm mais sensibilidade do que os franceses. E o ensino em Portugal é competente. Durante muitos anos, levei anualmente ao Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto convidados com formação na área dos perfumes, precisamente para cruzarmos experiências.

Como chefe de serviço de prova tem por função aprovar ou chumbar vinhos, que só podem entrar no mercado depois de aprovados pelo Instituto. Pode, portanto, arrasar a época de um produtor.

_Arrasar é uma palavra dura mas correta. Por vezes, é isso o que acontece. O respeito devido a quem trabalhou um ano para produzir um vinho não pode levar-nos a diminuir o grau de exigência para a aprovação dos vinhos.

Que informação prévia é disponibilizada ao provador?

_O ano da colheita e, tratando-se de um vinho do Porto, a categoria.

É fácil fazer «chegar» a um provador um pedido, um aliciamento?

_Nunca tive uma abordagem nesse sentido.

Três caraterísticas de um bom vinho.

_Elegância, complexidade, persistência. Traduzindo, é importante que os aromas sejam finos, sofisticados, e que o sabor permaneça.

Nesta fase da vida, quais são os desafios profissionais? Por exemplo, gostava de produzir vinho?

_Durante muitos anos pensei fazer vinho mas hoje já não. Há um curso internacional que gostava de fazer, até porque seria o primeiro português a ter essa mais-valia que me permitiria um reconhecimento internacional como bom provador mas não sei se me traria alguma competência técnica acrescida. Neste momento, sinto-me completamente realizado profissionalmente.

Fez vela antes e depois do acidente. Como foi o reencontro com o mar?

_O primeiro mergulho no mar foi o regresso ao local do acidente. Foi engolir em seco mas ao mesmo tempo senti uma enorme tranquilidade. Foi um desafio que tentei vencer o mais depressa que pude, precisamente para não criar resistências. Fiz exatamente o mesmo com a cadeira de rodas. Saí para a rua depressa. Os primeiros dias, claro, não foram agradáveis mas depois encontra-se a normalidade.

Deixou a vela de competição há cinco anos. Até que ponto lhe sente a falta?

_Sinto imensas saudades. Se estou na praia e vejo um barco logo fico a tentar perceber se está a fazer a manobra certa e se entro num barco logo retomo a vontade de competir mesmo sabendo que não é compatível com a minha vida pessoal e profissional. Tomei a decisão de abandonar a vela depois dos Jogos Paralímpicos de 2008 e posso dizer que foi a decisão mais difícil dos últimos 15 anos. Custa muito abdicar de algo de que se gosta e em que se é reconhecido. Fiz vela desde os 11 anos até ao fim de semana anterior ao acidente, em 1994, tinha 25 anos. Retomei em 2001, um dia depois do casamento do meu irmão, e pratiquei até 2008. Tinha 39 anos e a decisão foi tomada por incapacidade de conciliação entre a vela a vida profissional e pessoal. Agora faço vela de vez em quando, participo em algumas provas mas ando por lá, no meio dos outros.

Como era o seu dia?

_Uma alucinação. Todos os fins de semana eram passados a treinar; as férias a competir, por vezes era requisitado em tempo de trabalho para participar em provas e, portanto, quer a família quer a profissão estavam a ser prejudicadas. Muitos desconhecem o trabalho que dá praticar um desporto de alta-competição. O patrocinador exige relatórios e justificação de resultados, há que tratar das inscrições e há que enviar os barcos, a logística é complicada. Devo dizer que a Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência funcionava muito bem mas de certos pontos tinha de ser eu a tratar. Também encontra aí um pouco do meu feitio-gosto de puxar a mim a responsabilidade. Diria até que exageradamente.

Num barco, no mar, ganha liberdade e autonomia.

_É verdade. Não sinto em terra a liberdade e a autonomia que sinto na água.

Sonhava ser campeão do mundo de vela desde miúdo. Entre 2005 e 2008 foi vice-campeão e campeão do mundo. Cumpriu o sonho de menino, apesar de se tratar de vela adaptada?

_Completamente. Mais: o facto de o ter conseguido como atleta deficiente acrescentou doçura à conquista. Em contrapartida, talvez tenha sentido menos vaidade ou presunção. Por exemplo, só em 2012 me apercebi de que a taça de vice-campeão do mundo estava em casa da minha mãe, na casa de banho. Nunca lhe senti a falta.

Que parte do treino era mais custosa?

_Os treinos eram muito exigentes e obrigaram-me a abdicar de muitos prazeres. Ter de ir para a água com tempo frio era terrível porque o frio é-me altamente desconfortável. Mas no final do dia sabia-me bem sentir que me tinha superado.

Competiu na Austrália e sagrou-se vice-campeão do mundo com uma gastrenterite. Até onde pode ir a superação?

_Essa competição na Austrália foi especial. Em primeiro lugar, era um sonho antigo ir à Austrália, às vindimas. O sonho acabou por cumprir-se devido à vela, sendo ainda que se tratou do meu primeiro campeonato internacional. Até lá, não sabia se valia muito ou pouco como velejador. Em segundo lugar, apesar de estar acompanhado por outro atleta português, as expetativas recaíam sobre mim. Por isso, e apesar da gastrenterite, achei que devia participar. Lembro-me de outro campeonato, desta vez na China, em 2008, em que também competi doente, com uma infeção urinária. Mas não fui capaz de defraudar todos os que me apoiavam, a começar pelo patrocinador. Reconheço, no entanto, que foi uma violência física, sobretudo na Austrália. Mas os nossos defeitos são o reverso das nossas virtudes. As obsessões e teimosias são também a persistência que me permitiu lutar por um emprego, por exemplo.

A frase é de um tetraplégico: «Não sou um otimista nem um pessimista mas um possibilista.» Concorda?

_«Possibilista» é uma boa palavra. Revejo-me nessa frase, sim, apesar de eu perceber que sou mais otimista do que a maior parte das pessoas e por uma razão: queixamo-nos a maior parte das vezes do que não fizemos e não do que fizemos. Se eu não tivesse feito aquela prova na Austrália não teria ido para o campeonato do mundo, logo não participaria nos Jogos Paralímpicos. Por isso – e mesmo sabendo que também temos derrotas -, vale sempre a pena investir naquilo em que acreditamos.

Em 2011 fez uma incursão na política, no Movimento Esperança Portugal, ao lado de Rui Marques. Porquê?

_Porque não sendo um político e sentindo-me até desconfortável nesse papel, senti na altura a obrigação de tomar uma posição cívica. Aceitei o desafio sem medo de ser queimado, saindo da minha área de conforto.

Não lhe ganhou o gosto.

_Não. E sei que hoje seria completamente cilindrado. Atualmente, pertenço à comissão de honra do candidato à Câmara do Porto Rui Moreira, o que é muito diferente de estar no ativo ou entrar em campanha. De resto, neste momento, sinto-me bem sem grandes projetos. Há uns meses, lancei o meu livro, não porque sentisse um apelo da escrita mas por dever cívico. Quero dar testemunho de uma vida muito rica acreditando que posso, com isso, ajudar outras pessoas.

Em 2009 foi condecorado oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Como reagiu à notícia?

_Fiquei desconcertado e ainda hoje me sinto desconfortável a falar sobre a distinção. Mas é uma honra.

Como gostaria de ser lembrado?

_Como alguém que ajudou a tornar este mundo um lugar melhor. Gostaria muito que este mundo se tornasse um mundo melhor por eu ter passado por cá.

UM PROVADOR DEDICADO

Nasceu a 29 de março de 1969, no Porto. É licenciado em Engenharia Alimentar pela Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica. No último ano do curso, concluído em 1995, estagiou no Instituto de Enologia de Bordéus. É desde 1999 chefe de serviço de prova do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto e responsável pelas Câmaras de Provadores que atribuem aquelas Denominações de Origem. Professor há 14 anos da disciplina de Avaliação Sensorial em Pós-Graduações e Mestrado de Enologia e Marketing de Vinhos na UC, membro regular do júri do International Wine Challenge, Bento Amaral foi vice-campeão e campeão do mundo de vela adaptada na categoria de deficientes profundos. Em outubro de 2005, qualificou Portugal para os Jogos Paralímpicos de Pequim (2008), na modalidade de vela, competição que terminou em nono lugar, É regularmente convidado para escrever sobre vinhos (teve durante vários anos uma colaboração com a revista Wine), deficiência, vela, desporto adaptado ou sobre a sua vida. Participa também em conferências e debates sobre a integração de deficientes na sociedade, desporto adaptado e vivência pessoal. É desde 2009 oficial da Ordem do Infante D. Henrique.

Por Alexandra Tavares Teles in http://www.jn.pt/revistas/nm/ e fotografia de Anabela Trindade

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