CREIO nunca termos sabido de antemão a hora certa de um comboio que chega adiantado. Terá sido assim, também, na chegada à vida. Ou na morte aquando da partida.

Ainda não me desabituei de estacionar o carro, dar uma olhadela para a esquerda e acenar ao Sr. José (Francês, que é como o conhecia, talvez para o diferenciar de entre a miríade de emigrantes, retornados ou pré-retornados, de férias ou francofonamente estabelecidos). Ele olhava-me sobre o jornal, baixava o jornal e acenava e, de vez em quando, lá saía um sorriso.

Quando as casas se enchem de visitas temos baixas as guaritas. Se não for pelo aniversário, pelo velório será. Foi assim há mais de meia dúzia de meses. Embora não se estranhe a arrivée e a sortie das matrículas francesas em épocas de Natal e Ano Novo, a permanência além destes períodos traz consigo um cunho maior que a mera visita.

Era a doença que tinha vindo. E ficado.

Não sei ao certo a data de partida, continuo a estacionar o carro e vejo a sua esposa, sentada no mesmo local (ali, junto à churrasqueira) onde estava o marido, sem jornal. Talvez não lhe interessem realidades comunicadas quando não se consegue discutir com a sombra das décadas acompanhadas de solidão. Ou talvez esteja apenas a ver as laranjas e os limões a crescerem. Trocamos sorrisos. Quando a encontrei sozinha, sentada num murete aquecido por um tímido Sol, fui ter com ela, estendi-lhe a mão, trocámos palavras, procurei as de alento no dicionário da minha mudez e vim embora.

Chamou-me, hoje, a atenção da blusa branca, sorri pelo luto que se manifesta fora da habitual sombra eterna a que velam as viúvas. Há vida. E vinha atrás dela, a cantarolar, sorridente, até entrar no salão de cabeleireiro. Saíram ambas, momentos depois, a cúmplices, a neta de mão dada à avó e a outra mão a bambolear como se a seu lado fosse o avô a balançar na força septuagenária uma criança de encontro ao céu.

Chegou novo carro de matrícula francesa, não é necessário conhecer a família para perceber que o séquito vinha num sentido de partida. Um dos filhos chegara, abre a bagageira e são depositadas as bagagens. A pequenita, com a sua nova trança dourada, saltita em direcção ao pai e a senhora, avó, mãe, órfã de mãe terrena e casada com quem já não me sorri do lado de cá da vida, mete a chave no bolso da mala, encosta o portão, olha para as laranjas e limões que ainda persistem, secos já pelo abrasonado Verão que se pôs à mão, cruza o olhar comigo e sorri em despedida.

Vai para França, só de ida. Já nada aqui a prende, uma casa ímpar não rende. Entre memórias do que fica e o nada que resta, sobra-nos uma vida rica. E quem assim o aprende, verá também o Sr. José, enrodilhar o jornal debaixo do braço, meter as mãos nos bolsos das calças e desaparecer pela neblina típica dos que leram o seu livro até ao último capítulo.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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