“FOI um dia nas Fontainhas, que a vi falando com umas amigas. Atirei-lhes beijos e elas riram das gracinhas, coisas próprias das raparigas”.

A canção do Duo Ouro Negro deflagrou nas escarpas que seguram as muralhas fernandinas, amplificada por potentes altifalantes, no dia principal das festas sanjoaninas na cidade do Porto.

As vozes dos morenos cantores com sabor africano, embalavam-se na música e o poema deslizava pelas margens do rio Douro e era então um cântico sublime a nascer nas bocas da multidão de pessoas, quando chegava o momento apetecido do refrão:

– “Maria Rita, Maria Rita. Eu pergunto à multidão, mas ninguém a viu passar.”

Era um sussurro gigantesco e comovedor de tantas vozes em uníssono a acompanhar a maravilhosa interpretação.

Uns anos mais tarde, encontrei num recanto acolhedor denominado “Música Bar”, situado na cave de um edifício, perto do café “Continental” em Lourenço Marques, Moçambique, um dos fantásticos intérpretes dessa e de muitas outras composições que foram nessa época trauteadas pelos povos de todas as nações de língua oficial portuguesa. Foi inevitável uma breve conversa.

Ele perguntou-me se eu residia por ali, eu disse que não, que tinha vindo da metrópole.

– E que fazes aqui!
– Sou marinheiro! – respondi.
– Diz-me então o que faz um marinheiro em terra e tão longe de casa?
– Perdi-me! – respondi. E rimo-nos os dois.

De seguida, falámos essencialmente das músicas do “Duo Ouro Negro”. De entre elas, veio à coação a “Maria Rita”, como não podia deixar de ser. Contei-lhe que, uns anos antes, no dia da festa de São João do Porto, uma rapariga com esse nome me tinha feito perder o comboio de militares que partia da estação de Campanhã, todos os domingos à meia noite menos cinco minutos, com destino a Lisboa. Descrevi, com a exatidão que a memória permitiu, a sua fisionomia, da cor das tranças dos cabelos, da fita que as prendia e dos olhos da cor do mel das serranias de Valongo. Falei-lhe dos seus traços elegantes, da irreverência corporal ao bailar no mais emblemático bairro da cidade do Porto que nessa noite de 24 de Junho, era um imenso clarão de luz.

Enquanto eu a ia descrevendo, percebi que nos seus olhos escuros surgiu a visão de uma misteriosa mulher. Por instantes, tive a convicção de que a menina de quem eu falava, correspondia àquela que lhe atirou um beijo com a mão, no grandioso arraial onde um povo único no mundo nos contagia com a sua jovial fraternidade.

Entusiasmado, recriei por palavras e gestos a esbelta figura da “minha” Maria que usava um vestido cor de rosa, de tranças nos cabelos e corpo modelado por algum brilhante escultor da cidade. Todavia no íntimo, ambos sabíamos que a menina que deu corpo ao poema, podia ter sido uma mulher qualquer, um produto da exclusiva e criativa imaginação de dois grandes artistas angolanos.

– Essa não era a mulher que eu vi a falar com as amigas, disse ele visivelmente nostálgico. E continuou:

– A Maria Rita da Canção, não usava tranças no cabelo!

Pois não, meu caro amigo, a tua Maria Rita era diferente da minha, tinha o corpo bronzeado pelo sol escaldante das pradarias de capim angolanas, e os cabelos encarapinhados eram negros, e os seus olhos eram dois diamantes da mesma cor. A minha Maria, era doce, tão linda como a tua, tinha os cabelos lisos e da cor dos ventos que fustigam as areias das praias da Foz do Douro e uns lábios de onde partia e chegava toda a sensualidade deste mundo.

Ninguém foge ao seu destino. Podemos correr o planeta inteiro, mas acabamos sempre por obedecer à natural ordem cósmica e a ela, ninguém pode escapar. Nunca mais a voltei a ver desde essa noite.

Mas, ainda hoje, por alturas das festas de São João, quando me chega aos ouvidos o som dessa antiga melodia, semicerro os olhos e, enquanto a música toca e se expande pelos morros de Gaia, o meu coração lembra o rosto dessa rapariga e os momentos felizes que vivemos´, num espaço de tempo tão efémero como um beijo. Então, como num lamento, começo a trautear muito baixinho a letra da cantiga que nós os dois, abraçados um ao outro, ouvíamos nessa distante noite de diversão e folia, que nos fez tão intensamente felizes:

“Quando chegou a madrugada, ninguém sabia de nada e eu fiquei tão triste, tão triste, que se ela soubesse, voltava para me abraçar”

É tão tarde, são sete horas da manhã e eu fardado de marinheiro aqui a dançar abraçado a uma mulher que nem conheço, no meio de uma praça da Cidade Invicta, a esquecer todas as obrigações militares a que estou sujeito. Tenho de caminhar de braço dado nela, até à estacão de Campanhã. Despedir-me dessa mulher que, apesar de ter Maria no nome, nunca se chamou Rita, mas que representa as poucas e belas mulheres que povoaram a minha juventude, e apanhar o comboio Correio com destino a Lisboa. Onde me espera a fragata “Roberto Ivens” para navegarmos felizes pelo mar fora, em busca de novas e excitantes aventuras.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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