JÁ foi um rio imenso, uma corrente líquida livre que, a par do pão que distribuía pelas populações das margens, provocou sobressaltos, dor e sofrimento ao sair do seu leito e a destruir colheitas, animais, arvoredo e tudo o que se opunha ao seu avanço rumo ao oceano, durante séculos. Mas, domado que foi pelas necessidades energéticas do homem, transformou-se numa sequência de lagoas, vulgo albufeiras, poços enormes onde a história de várias povoações, jaz inundada e são reservas de água produtora de electricidade, de jacintos e outras algas invasoras. Também berçário de peixes devoradores das espécies autóctones, de provas náuticas, corridas de motas de água e embarcações de desporto excessivamente poluentes, de viagens em barcos hotel de enorme envergadura para visitar sítios deslumbrantes, regalo para os olhos dos turistas, poços enormes onde configuração original de muitas povoações, jaz sepultada.

Os povos ribeirinhos são os grandes perdedores da transformação operada nas suas vidas e, de certa maneira, na paisagem que hoje propícia belas fotografias e vídeos, mas não faz esquecer o alienado direito a, democraticamente, manifestarem a sua anuência ou discordância. Bem como o acesso à justa compensação, pelas enormes perdas morais de terrenos férteis, da extinção de barcos tradicionais, da pesca artesanal. Tudo causado pela subida das águas desde Crestuma/Lever, até um pouco acima, de Barca Dalva.

O Douro é um rio, apenas um dos muitos que jazem encarcerados no leito onde corriam naturalmente, sem ter tido uma palavra a dizer num processo que serviu e continua a servir apenas alguns, pois as mais valias, retiradas por via deste encarceramento, não ficam na região que ele atravessa que é pobre em tudo menos nos seus habitantes, nos seus hábitos, usos, costumes e biodiversidade.

Vem de muito longe, da província espanhola de Sória, nos picos da Serra de Urbião, onde nasce tão pequenino como qualquer um de nós, humanos, a 2160 metros de altitude.

Atravessa parte da montanhosa Região Norte de Portugal. Percorre 850 Kms até chegar extremamente cansado, à sua Foz, junto às cidades do Porto e de Vila Nova de Gaia.

São quinze barragens: cinco em Portugal, outras cinco no seu troço internacional, e outras tantas em território espanhol, a oporem-se ferozmente à sua caminhada em direcção ao mar com quem sempre sonhou. São obstáculos medonhos, construídos de cimento bruto e ferro, correntes que o tentam prender, embora sem pleno êxito, por que a valentia incomensurável que o anima é a vontade de vencer, a tenaz obstinação de vir a ser um imenso oceano. E disso, nada nem ninguém o consegue impedir.

O seu nome vem-lhe do latim «duris» que significa duro, porque duras são as margens e toda a paisagem que o envolve, ao longo das altas escarpas e falésias das Arribas do Alto Douro no seu troço internacional entre Barca D’Alva e Miranda do Douro.

Depois de ultrapassar esse emaranhado de montanhas, é doce, meigo, espraia-se largo pelas terras próximas ao litoral e afigura-se como a realização de um sonho gigantesco, praticamente impossível de realizar pelas forças dos humanos.

O rio Douro é um “Sinhor” como dizem os habitantes da sempre nobre cidade do Porto. Este tratamento intimista e particularmente afetuoso, define a grandeza do amor que essa corrente de água conquistou no coração do povo tripeiro, ao longo de séculos.

Se houver Natal como nos está prometido, nessa noite que há de ser de luz, quero estar no meu batel, cercado de água doce por todos os lados, na companhia daqueles a quem muito amei e já partiram desta vida, à espera do Menino Jesus que vem trazer a paz ao mundo e fazer sorrir as crianças, que nunca deixaram de acreditar que Ele existe, seja de que forma for. Até na de um inocente curso de água doce, a cumprir pena de prisão perpétua.

Feliz Natal rio de ouro.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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