QUANDO descemos para os calabouços, a luz trémula fazia prever um sombreado disforme nas paredes, quase como se nos pudéssemos mascarar de granito e darmos as mãos no escuro, onde as pedras se lamentam metamorficamente. Pé ante pé, os degraus soluçavam por baixo de nós e, pelos que vinham atrás, acima de nós também. Aquele caminhar, o descer à abóboda de um mundo ao contrário, parecia-me uma marcha silenciosa numa procissão de condenados, sobre nós o trovoar de passos de, deduz a minha imaginação, deuses que caminham pacientemente na esperança que a Natureza acorde os que adormecem ao Sol e sob nós o burburinho de uma Terra em ebulição e que nos faz sentir firmes, mesmo sobre um pequeno torrão.

Afiançaram-me que seria poesia e eu sem nada saber procurava ao redor de mim, onde estaria ela? De olhos abertos, fazia pequenas rimas em formas de apontamentos, notas para mim mesmo, uma protuberância de existência, uma pitada de inconsciência e mais degraus até à antecâmara onde palavras de quem já não falava testemunhavam o futuro. No final, um homem pequeno em frente a uma porta enorme. Quando todos parámos e silenciámos ouvi um ligeiro bater, o som abafado que vinha do lado de lá de onde quer que estivéssemos. Com a indumentária a rigor, o porteiro homem abre a porta deslizando-a, a parede foi engolindo o metal e quando se fartou susteve a respiração deixando que todos passassem e se sentassem.

A luz crepuscular abafava os inúmeros arquivos onde permaneciam inalterados os ditos e os não ditos. De olhar adaptado à semi-escuridão, esforço-me por ver as palavras que vão sendo declamadas, dedilhadas, sim, porque a música é também o falar de quem a sente, conversadas, enumeradas como se se fossem emoldurar em decretos, agrestes e soltas como um farol sem lei, ondulando pelas costas de um país que não compreende o rimar, o rir e o mar.

Os holofotes acendiam os olhos, de frente a luz pode ser uma escuridão branca e ofuscante, as palmas e os sorrisos acalmavam a noite de Inverno que tenta despedir-se com a ribombaria típica de trovões (ou seriam ainda os passos sobre mim?). Disseram-me que seria poesia e acreditei. Mas a verdadeira estava ali, em indumentária de contínuo, a suster a porta que a parede engoliu, com a barriga encolhida para que os convidados passassem entre ele e as cadeiras, com um sorriso rasgado escondido que apenas o lago marejado nas órbitas fazia prever.

Fui dando passagem a todos que pude, agradeciam ignorantes da minha intenção em propositadamente atrasar-me, confundidos com uma simpatia que não possuo, ou talvez seja isso a timidez. Quando sobrei eu apenas espreitei-o, ainda encostado à porta aberta, num sorriso cheio que o momento pedia, de olhos fechados saboreava e eu silenciosamente agradecia, afinal era ele a poesia.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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