SENTADO na viagem, em pé na vida, conduzia a carrinha adaptada em biblioteca móvel numa estrada inapta ao calcorrear de pneus alcatroados sobre o piso de terra. O safanão que um buraco a meio de uma curva atirava como uma gralha num parágrafo inacabado, alavancava os livros na traseira que, apesar de devidamente acomodados, sulcavam no ar páginas abertas por onde escapavam palavras de quem os leu e, no íntimo, as calou como sonhos vívidos quando, à sombra de um toldo, viveu uma aventura erigida de palavra em palavra, até o sorriso e o mirar da contracapa findar o dia como um novo recomeço. A vida lê-se, escreve-se e, nos entretantos, para quem o sabe fazer, vive-se.

O largo empedrado onde o granito galgava as ervas por entre as frestas estava habitado, agora, pelo andejar de diversas pessoas que, qual espuma de uma maré inócua, povoava o mar de pedras à sombra de um carvalho central, numa praça descentralizada onde um êxodo rural inexplicável atravessava a solidão, dos que partem e dos que ficam.

O som da carrinha fazia os mais velhos apertarem os nós dos dedos, como grandes giestas cujo gesto mais subtil era, agora, o levar a mão ao bolso da camisa e retirar o pente de plástico, lavrar a torga do cabelo e sorrir, enquanto no colo se fitam, pela última vez, as lombadas cujos títulos e autores coexistiam na pacífica convivência com o etiquetado registo da biblioteca. Os mais novos, garotada que subsistia feliz na ausência de internet rápida o suficiente para partilha de jogatilhas online, vivendo mais rapidamente pela lentidão dos frames dos aparelhos, imaginava já a conversa com o senhor condutor, bibliotecador, inventor, animador, leitor e felicitador, cujo sufixo em nada tinha a ver com maleitas e seus efeitos, apenas rimava com amor.

Estaciona com a ajuda dum ancião, sentado, manobrando no ar a bengala tosca num não menos tosco e arrastado esbracejar. Sorrindo, a carrinha estremece quando a chave se roda ao silêncio, ergue-se adentrando na biblioteca móvel e como que submergindo em águas rasteiras onde mergulha a solidão de quem se sabe multidão, emerge na porta lateral que se escancara e deixa fugir para a rua ensolarada toda a luz invisível que ornamenta quem se sabe escrever, em livro ou em gesto, em tudo ou apenas no resto.

Aproximam-se sem medo, máscaras que caem no abraço destemido de uma distância social impossível de cumprir a quem, na amena tristeza, se permite sorrir. Há troca de livros, registos feitos e desfeitos, partilhas de olhares que os anos aprendem a ler, afinal somos apenas aquilo que temos de ser. O insondável e inefável é o permitido na leitura do que não está escrito, como o braço sobre o mais recente viúvo, a recomendada BD do super-herói antítese da vitória a um puto cuja deficiência não lhe impede a glória.

No retrovisor, de saída, com o bibliomóvel desengatado na carreira, os braços ostentam acenos e embalam a tarde, enquanto uma pequena lágrima de felicidade reticencia-se, os finais acomodam o que sentimos em nós quando, connosco, não estamos sós.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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