A manhã da Póvoa tinha dado à costa uma neblina fresca, transpirando salpicos de maresia a cada passo ao longo da linha da praia. As lojas dormitam na manhã de feriado, a liberdade ainda não saiu à rua, faces sonolentas passeiam pequenos canídeos e uma sorridente funcionária camarária varre a baixa parede que serve de degrau aos mais impacientes, longe que vêm os degraus para o areal.

Do outro lado da avenida, um ou outro estabelecimento abre as portas aos funcionários, tez asiática, um mundo de igualdade a quem procura liberdade, que vão conversando em voz alta com a invisível e incompreensível língua que ecoa no auricular. Mesmo à distância de um hemisfério, o estrangeiro pode fazer-se lar. Movimentos rítmicos e bem ensaiados à luz da prática limpam as vitrines viradas para o Atlântico. Com a ignorância de saber ao que me voto, na democrática presença de se fazer saber o que não se sabe ser, caminho lentamente, saboreando a tranquilidade de uma costa que tanta falta me faz nos meus planaltos sonhos interiores.

Antes de aqui chegar, tinha já desaguado na foz do Douro, percorrendo ruas madrugadas por surfistas, cuja ideia de mergulhar no gélido mar me faz os vidros fechar. Além das dunas matinais esparramadas e ao chão pelas ervas ancoradas, vários turistas calcorreiam caminhos ladeados por vieiras amarelas, telemóvel na mão, nas costas um mochilão, botas de calcanhar alto, calças à prova de tudo, excepto caminhar, uns ou outros braços fora das t-shirts desafiando o frio que, a esta hora ou a este quilómetro, pode já ter evaporado o gélido ar litoral. Apenas o ponto final me obrigou a terminar a descrição. Mas, retomando, as bandanas impedem que o suor mareie às frontes e traga uma vaga salgada ao olhar, tão longe ainda do tumultuoso mar que Deus nos deu, e nele uma barca ao largo galego, manobrada num campo de estrelas por Ya’aqov filho de Zebedeu.

Já na calçada, as ondas arrulhavam ao longe o rumor da pesca em descanso. As barcas dormem no areal e as redes, filtrando a brisa, sonham conter grandes peixes etéreos num firmamento que desconhecemos porque não o vemos. Em pequenas levas multinacionais e de várias faixas etárias, cardumes de caminhantes cruzam-se comigo contra a corrente, na vida e na estrada, com eles, em jornada, entre risos e auto-retratos, línguas distintas vocalizando conversas aleatórias, afastando a quietude de um caminho que pensei ser de devoção. O turismo sacraliza rumos e, por si só, no registo hedonista da oração, falta ao ser humano um pouco de coração.

Sem conseguir saborear o silêncio, decidira voltar ao ameno torpor da viagem automobilística de regresso quando vejo chegar a única peregrina. Indistinta de raça, sem indumentária de marca mais conhecida, pastoreava-se sorrindo nas parcas indumentárias. A pequena mochila emparelhava com a leveza do olhar além do horizonte. Na mão direita um pequeno rosário de madeira rebolava as contas entre os dedos morenos. Passou, enfim, por mim, sem coloridos e modernos bastões de caminhada, pé ante pé apoiada e segura, apenas, na fé.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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