O CEMITÉRIO aglomera-se de silhuetas difusas que o Sol, errante em meses de Inverno, projecta no chão nesta a que chamam morada eterna. Local de silêncio, porque o amor não faz barulho, resgata à saudade o cuidado com que familiares, amigos ou curiosos, há gostos para tudo, relembram, dependendo da distância da marca lapidada no amarelecido metal à actual, a partida sem regresso visível.

O portão esverdeado de musgo que teima em crescer até aonde está a vida a morrer, vê-se atravessado, enquanto aberto e de sinaléctica covidiana ornamentado, por senhoras de diversas idades num movimento pendular temporal. Cavaleiras medievais de vassoura e balde armadas, avental padronizado, ei-las guardiãs de um partido, talvez amado, asseando campas. Há misto de dor e resignação, alívio e compaixão quando prostram o joelho no chão durante o asseio às lajes de granito que vêem passar os tempos sobre o tempo que dormita sob elas. Guardiãs da escuridão, lamparinas, velas, vão sendo substituídas a cada pavio apagado, desgastado, de tanto lhe consumirem a vida.

Aldeia fiel à vida do lado de cá da Vida, mantém construções diferentes onde vivos lutam por quais mais belos invólucros de mortos. Ou talvez não, agrura minha, talvez tentem apenas dar o melhor que podem a quem por cá já não se tem. Sabe a saudade, a água aspergida, varrida e que corre, depois de bem sacudido o granito ou mármore com a mão – algumas com duas alianças no anelar – pelo rego até à grade onde tudo desaparece. Excepto a saudade. Terá, ela, idade?

Desço os degraus para onde, ao baquear surdo de terra sobre madeira (não o poderíamos fazer doutra maneira?), descerá a semente de memórias, a recordar em serões de silenciosas histórias.

O viúvo apoia o cotovelo numa cruz de campa alheia resignado, cansado, olhando, ouvindo o som surdo da terra sobre a madeira e dos passos lentos que se dirigem para a saída, “está feito”, ouço.

Chove, uma espécie de choro nublado, como se o ar, rarefeito, se condensasse e tornasse espesso o respirar e antes da progressão efectuada a este local de eterno descanso (poderíamos chamar-lhe “o local de onde partimos para o descanso”?), vejo, à minha direita, o quanto a simplicidade arranca de sublimação existencial, inclusive aqui, onde nem floresce bem ou mal: uma campa rasa, a lápide de cimento e de branco pintada, a ausência de qualquer nome (quando se ama, não é necessário dizê-lo), uma pequeníssima e tosca jarra (quase copo) com flores frescas, a vela quase escondida na lamparina e um envelope plastificado com a frase, numa caligrafia infantil, “para o meu pai”.

O Sol irrompe por momentos, semicerro os olhos pouco habituados a luminosidades impenetráveis e, também, porque a humildade da inocência infantil inebria a chuva por detrás das pálpebras. A meu lado uma sombra verga-se sobre a alva sepultura e apanha a carta, lê-a e, erguendo-se, olha-me com um sorriso iluminado, partindo de seguida, subindo, à boleia de um raio de Sol.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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