AS ESTRADAS, quando não nos levam aos locais que conhecemos, serpenteiam por entre localidades onde somos estrangeiros. O desconhecimento acaba por pincelar as serranias de verde onde o cinzento urbano já nada nos consegue colorir. Enquanto saboreio a viagem, curta, por não saber onde estacionar com o cuidado e zelo em não estorvar ninguém, um pouco como aprendi a fazer na vida, galgo a imaginação debaixo dos toldes e oleados da feira, assente no revitalizado mercado do Couto. Já por lá não andam damas e cavalheiros, cavaleiros e futuros reis conquistadores e guerreiros. Agora, pijamas cardados espreitam por debaixo das abas das calças desportivas, talvez saboreando a manhã fria sem que a riqueza dele se ria, repousando na chinela de plástico moldada por uma máquina gélida e cansada, em oriental escravidão laborada.

Do lado de lá da estrada, o lado de cá de quem por lá está, cigarros consomem fumadores austeros, sobrolho erguido, perscrutando veículos que abrandam, feirantes vendendo no pregão que cantam, a vara que brame o céu até atingir o cabide com o vestido desejado. O café carrega toldos desbotados pelo frio que se abate em flocos de solidão, viuvezes indistintas de género, futuros de costas voltas ao rio, lá ao fundo, dourado para uns, galego para outros, dos quais apenas os xistos metamórficos recordam.

Estaciono como posso, sobre o passeio, os piscas intermitentes pedem desculpa por mim, acendendo e apagando a urgência de avisar que, se tudo correr bem, demorarei pouco tempo. Imagino transeuntes contornarem a viatura, sem qualquer queixume, habituados que estão a ultrapassarem obstáculos nas vertentes umbrias das suas encostas, por vezes com toda a vida às costas. A chuva compadece-se de quem no exterior se afoita à vida, cai fina, indelével, quase permitindo que caminhemos por entre si sem nos molharmos.

O presente desenvolvido, ainda que parcamente contrastado a jusante, fica para trás assim que ultrapasso a fachada em recuperação de uma casa brasonada. Aqui, a simbologia granítica relembra a nobreza que a minha imaginação converte em realeza. A nação é de um aio, comprometido em fazer de parca ignição um flamejante raio. As paredes perdem o musgo secular, avisos de licenciamento e logótipos de gabinetes de arquitectura caiam as paredes e taipais que escondem a intenção dos plebeus. O caminho medievaliza-se numa calçada irregular, inclinada, estreita o suficiente para o carroçado por ali resvalar à força equina ou bovina. Passo um largo, o primeiro, depois outro, o segundo, literalmente, vergo-me à chuva que começa a cair com mais intenção a tempo de ver o que não pretendo calcar e encontro quem por mim espera.

A pobreza, quando é a própria riqueza mascarada, quase pede desculpa por existir. Indica-me o caminho pela escadaria de mármore escorregadio, manchado. Entro na casa de uma mulher só, enviuvada, de marido e alegria. Um queixume apenas pelo preço da botija de gás, de resto, oferece-me o que tem agradecida pelo favor, que educadamente declino.

Regresso. O Sol encima-se às nuvens negras, ilumina as encostas do Douro e espreita a grei sem brasão, que ficou comigo no socalco da minha mão.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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