O povo já era próximo antes das uniões de freguesias que nos trouxeram proximidade toponímica, mas não afastaram o abandono que grassa nos patamares oliveirescos onde crescem olivas por entre o abandono. Toda a terra nos quer seu dono. Ainda que sobrem por lá ruínas e promessas de escombro, a memória não escolhe onde criar raízes, sejam elas ausências tristes ou lembranças felizes.

O largo estreito da aldeia no lugar, ou lugar da aldeia, vai vendo as casas desfalecerem à passagem do tempo. No balcão da loja há um puto que serve água em vez de bagaço, coisas da mocidade, que despertará uma boa gargalhada quando ela, a idade, surgir cinquentenária por sobre os nomes que se vão gravando nas lápides.

Em muitos locais, só no cemitério cresce população. E mesmo aí, os montículos de terra, as jarras erodidas pelo vento, o verde do musgo crescido no interior das águas estagnadas, alimentam pequenas margaridas embevecidas que iluminam o olhar de quem sobe a escadaria granítica, imponente após a passagem do portão enferrujado. Todos sabemos que a morte foge por onde quiser, não há barreiras à sua passagem, apanha-nos a caminho de qualquer miragem e, por sorte, talvez nos permita levar na memória as pessoas, como formigas, no lufa-lufa entre subir e apear de um comboio que vagueia agora afundado na recordação.
– Aqui é Carlão – dizem-me, mas um lugar ou uma rua, avenida ou travessa, tem por entre si vielas graníticas, sulcos de velhos carros a gado puxados, esquinas rombudas desgastadas por tojo e milho, pai na rédea guiando mato ou filho.

À porta da capela, o sino espreita quem por ali assoma. A fé emigrou, também. Que fazer, agora, ao final da tarde de domingo, quando no meio de um oceano de pessoas, somos uma ilha a procurar reflexos no reflectido do céu numa poça de água por entre paralelos desajustados? Que rio em nós desagua? Vamos varejando o final dos sonhos na esperança de cair algo que sublime, virgem, nas encostas desde o cimo do lugar e nos faça, de novo, paisagem e sonhar.

Enquanto guardo o meu pequeno caderno vazio, vejo-o espreitar, em bicos de pés, a criança crescida, pela janela quadriculada da escola primária enquanto a professora, distraída, lecciona o mundo que outros conhecerão. Passou depois pela loja, mercado, balcão e vitrine de quem mundo correu. A balança pesava o sabor dos dias petizes, o odor a mercadoria entranhava-se no bordo húmido da marca do copo de aguardente.

Velho, sozinho, apoiado no tripé do passado vivido e desejado, percorria as ruelas ladeadas de recordação. Os vultos passados acenavam das janelas que segura paredes, já sem telhados.

O olhar fotografava o que a lembrança escrevia em luz, no grisalho momento de à aldeia regressar, ainda que Franzilhal seja apenas um lugar.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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