O TEMPO, apesar de não existir, vai fazendo de cada um de nós o modelo para as suas pinturas. Crava uma ruga aqui, uma saudade ali, um qualquer padrão que nos embrulhe e entrega-nos à vida, apesar de não existir, para que ela se encarregue de nos unir num gigantesco mosaico, um dodecaedro cujas faces internas são o caleidoscópio das memórias.

De todas as ambiguidades, a dualidade da vida vs tempo parece levar em si, bem escondida, todas as palavras que teimo em tentar compreender antes de escrever.

Troco dois relâmpagos por três trovoadas murmurantes a quilómetros de distância. Ou, então, por um segundo de imortalidade nas rugas pintadas pelo tempo, esculpidas por mim, artesão de mim mesmo.

Entro pelo sono abraçado à noite, na esperança de ela mesma, quando se cruzar no horizonte com o dia que nasce, lhe passe os sonhos que se diluem quando acordo.

Nunca acontece.

Acordo com o despertador e, nesse momento, tudo e todos que me rodeavam se assustam com o início do desenrolar de mais um dia que se vai parir e morrer cedo.

Só quando a claridade me deixa torpe suficiente, consigo, ainda que fugazmente, ver levantarem-se da minha beira os meus zeladores, deitando-me com o carinho que, acredito, dedicam a cada um de nós ignorantes.

Nascem dias todos os dias, muitas vezes mais do que uma vez por dia, mas continuamos, apesar de esforços invisíveis, adormecidos anos e anos enquanto aquilo que pensamos ser vida passa por nós, fatigada.

Que tudo procuramos nós, se tudo o que necessitamos é nada?

SOBRE O AUTOR:Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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