VOU, contente, saboreando o final de tarde por entre os pinheiros, oscilando nas sombras e calcando anos e anos de caruma que me almofadam o andar.

Já não sei se é tarde, noite, manhã ou cedo.

Sim, sei que era final de tarde, mas, para mim, tudo é final de tarde quando o céu se assemelha a um testo que dança ao sabor do vapor que sai do tacho, quando a toalha dobrada se deita para o prato, o garfo, o bocado de pão, a circunferência desenhada pelo cu da garrafa de vinho.

Não há tempo.

Para nada.

Nem para o tempo.

Pergunto, a mim e ao sobreiro resistente na esquina que sobeja, quanto resta de céu e inferno até se esfumarem, como o aroma na cozinha quase vazia, as guerras entre o que somos e o que pensamos ser, até por fim deixarmos cair, uma a uma, máscaras, como a caruma.

Não obtenho resposta, felizmente, e vou contente saboreando o final de tarde por entre os pinheiros e as pessoas, calado na imensidão de vozes que se calcam.

Escrevo-te do lado de cá da chuva, onde se aram os ares da tarde e se enraivece o vendaval, só porque sim.

Sonho também com o rugir de um mar à porta do futuro, como se me abrisse a janela a noite e viesse, devagarinho, pendendo os pés no vazio sem medo de no dia caminhar.

Ouves-me?

Aqui os rios correm quando chove, no leito vão quando se secam as nuvens, mas hoje os rios riem em todo o lado, estás a vê-los atabalhoados como petizes à saída para o recreio?

Vão a deslizar encontrando leitos por entre os paralelos, são felizes por isto, isto basta, agacham-se ao chegarem ao sulco mais profundo e imagino-os chegados pé ante pé ao peito das mães no afago sereno da maternidade depois de uma cascata de vidas.

Já pouco chove agora, cansou-se de me ler, os rios ribeirizam-se e por te ver além dali cai-me a vontade ao chão.

E a razão.

Algures paras turbilhado no cinzento que te contém. Vais vaporizar e seguir viagem, talvez triste, mas continuas.

E que será de nós?

E da chuva?

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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