CONTO os quilómetros que ficaram para trás e mesmo com o planalto talhado a sombras de nuvens disformes, não deixo de pensar que o caminho faz-se sem sair do local. No monte disseste que basta a cada dia seu mal. Compreendo-te. Torno a atenção para o tracejado da rodovia e aos nós dos dedos no volante, alvos, enquanto passa por mim uma auto-caravana onde na traseira putos desenharam um cartaz: “se é feliz, buzine”. Buzinei. Sou feliz e nem eu próprio o sei. Existo e, mesmo assim, não hei.

Não havia nada para ver no ermo passageiro onde os estrepes, cortados de fresco, eram a única coisa que arrefecia a paisagem. (só a metáfora nos permite sobreviver ao que chove da ágora). As viagens pelas terras que não florescem gentes ganham um cunho de visita ao abandono, as paredes que ainda não caíram são lápides onde estão inscritas os quilómetros que faltam para as povoações vizinhas. Bem poderia ostentar “Aqui jaz uma vida, pouco interessa o nome que tinha. Morreu só, tal como a vizinha”. A seguir outra casa, paredes erguidas, uma serração onde se erguia ao céu os restos de um charrió enferrujado, esquecido pelas madeiras que viu serrar. Dir-se-ia ser a sina ou apenas a vingança da resina.

A porta entreaberta deixava passar a claridade que sabíamos ser falsa, mas que ainda assim, na rememoração do dia, facilitava a fotossíntese à alegria. Não podemos ser aquilo ao que não nascemos, a não ser que nos lembremos eternos. Mas a filosofia vale pouco a quem quer colocar comida na mesa, assim o ouvi uma vez, enquanto fingia ler o jornal e o meu nome me escapou à jurisdição de um conto, encostado à prateleira tosca do Ikea, como se os momentos fossem para serem assemblados sem grandes instruções ou qualidade interpretativa, no fundo de uma garrafa de cerveja quando o último gole nos desvia o olhar para o tecto de madeira onde as manchas da humidade do piso superior fingem serem nuvens. “Vens?” perguntaram-me, e eu fui sem me preocupar em demasia, voltando à autovia da rota de prata.

Há uma multiplicidade de existências numa viagem, um oásis depois de cada miragem, um olhar que nos procura no retrovisor, como se nos vendo por nós mesmos pudéssemos voltar a ser um celeiro entre ermos.

O GPS indica uma direcção, sigo-o e à sua intuição electrónica de nos enviar para onde esteja a nossa vibração harmónica. Há algo de predestinado, saber-me perdido embora esteja encontrado ou o cartaz que nos diz chegarmos ao sítio certo logo a seguir à curva onde, soçobrado, quase me permitir regressar no caminho. Não sabia estar tão perto.

Uma mão repousa na minha perna, um sorriso à espreita, o sonho que no meu colo a cabeça ajeita e a solidão, eterna, de me ver a olhar para mim, contando os quilómetros que ficaram para trás e enquanto os resquícios de outras existências se permitem aconchegar a uma só vida, corto às escondidas um ramo de alecrim. Esta estrada é só para mim.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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