ALHEADO à indiferença de não ser apreciado, o diospireiro adormece na tarde de sábado ao som do vento a sacudir os ramos dos limoeiros, que batem à janela da garagem iluminada pelos copos transparentes onde sorriem chamas que apenas fornecem um ambiente bruxuleante às horas esparramadas no sofá, feito com paletes de madeira fumigada.

A música ecoa nas paredes aquecidas pelo aquecedor a gás, a coluna Bluetooth amorna o ambiente em tonalidades condensadas que lacrimejam os vidros. O silêncio, incomodado, encosta-se apaixonadamente ao ruborescido que emana da mufla, transpirada, de calor e peças de cerâmica. Não só no fogo se forjam estrelas.

Primeiro era o vazio. Pousado na bancada, o criado criador prolonga e cria a lastra que se esparrama, satisfeita, no tampo laminado, até ganhar forma luxuriosa por entre os dedos experimentes do ceramista. Do pó vens, ao pó retornarás. Neste caso à argila. O homem, tal como Deus, não vacila. Enformado e desenformado, do braseiro hipnotizante ao amontoado de serrim e jornais, as peças sufocam e soltam seus ais. Eis-te concretizado, oh de Deus criado.

De costas voltadas à tarde, os pingos de chuva que se fazem aguaceiro sobrepõem-se à musicalidade ritmada. Pára-se a música. O silêncio desencosta-se e faz-nos companhia agora. Insensível à insensibilidade humana, a ilustradora ilustra o ilustrado que não conseguimos ver, a mensagem por entre sussurros que nos chegam, agora, dos ramos do limoeiro. Ah, bastam amigos para nos ruborescerem em braseiro. Sem abraços, que somos nós, além de árvores tumefactas sem voz?

Na paleta de azulejos, os diversos pincéis vão tacteando o que se fará vidrado. Todo o mundo poderia assim ter sido desenhado. E pintado. Há constantes misturas de tonalidades num discurso anti-racial, não vem a nada disto algum mal. Motivos florais, santos, pecadores, todos iguais. A história ganha um contorno visual cujo relevo se revela no sorriso florido e no olhar sensibilizado pela beleza do que se desenha. Uma imagem escreve mil palavras quando não sabemos escrever o inefável.

Os últimos traços do pêlo de marta acariciam o final da tarde de domingo.

Sem que se apercebam, o Criador veste-se de inspiração, molda-se ao braço da criação e no gesto sorridente de quem ilustra, num sopro vital, seca a pigmentada placa de cerâmica, o quadriculado painel de uma tela infinita. A ilustradora volta-se, sorri-nos, há uma concordância em género e estilo com o silêncio que, entretanto, tinha pedido aos ramos do limoeiro um pouco de sossego. Poderíamos vê-los, mas o mundo é cego.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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