DEPOIS de Thomas More, o sentido da utopia  – não lugar – cristalizou-se na ideia de um lugar feliz, na possibilidade de se ter uma vida melhor numa sociedade mais justa do que aquela em que se vive. A esperança é a chama que mantém essa aspiração e a utopia é também o género de literatura que lhe dá corpo. Nusquam – em lugar nenhum – era a palavra latina que More usava antes de publicar a Utopia (1516), mas este neologismo seria mais adequado para designar uma outra coisa verdadeiramente nova – a de que o futuro não era um fado, mas algo que se podia construir sobre um sonho ou um desejo de transformação. [1]

Como isto nos faz falta para o desencantamento que se vive nesta cegarrega delirante onde a regra crua do dinheiro convive com as palavras amorfas e gastas, as ideologias mornas, a natureza, a sustentabilidade, o ciclismo, as saladas, a resiliência, os mercados, o empreendedorismo, a casa dos segredos, o rigor ou o défice.

E contudo há utopias bem simples…, pomares, hortas, casas, emprego, carrito, e uma roseira à porta, muita saúde, algumas rotinas e centelhas de alegria da pimenta da vida. O resto não importa muito, a rua pode ficar mais uns tempos sem asfalto, a rede eléctrica funciona, as telecomunicações também, a água corre serena nas torneiras e dos autoclismos se desprende em golfadas sonoras para aliviar certas coisas com as quais não se pode mais.

SOBRE O AUTOR: Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da EstradaVida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

Publicado originalmente em 25 de Junho de 2015

[1] Fátima VIEIRA (2010) , The concept of utopia, in Gregory CLAEYS, The Cambridge Companion to Utopian Literature, Cambridge Collections Online, Cambridge University Press, http://dx.doi.org/10.1017/CCOL9780521886659

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1 COMENTÁRIO

  1. É sempre um prazer ler os escritos do Álvaro Domingues. A clareza com que escolhe as palavras faz com que tudo pareça simples. Basta um mote e as palavras surgem de enfiada, reais e ritmadas. É o conforto de quem conhece e entende a realidade, com todas as suas contradições. Há a coragem para denunciar, para refletir sobre as coisas da vida e dos lugares, pois não há receia.
    Este dom é privilégio de poucos.

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