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Rua da Estrada do Lugar da Estrada

Rua da Estrada do Lugar da Estrada

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SEM tirar mérito algum a Marc Augé e ao seu livro “Não lugares – introdução a uma antropologia da sobremodernidade” (ed. original Paris: Le Seuil, 1992), diria que esse título anda a fazer demasiados estragos. Quando Marc Augé fala dos não-lugares usa a expressão para se referir a lugares genéricos como aeroportos, centros comerciais ou estações de serviço, lugares especializados dados à hormona consumista, anónimos, que se vivenciam de modo superficial como coisas descartáveis e com pouco sentido fora da sua função estrita. Lugares e ambiências supostamente desencantadas, portanto. Ao contrário, o lugar antropológico seria um lugar dotado de uma grande espessura de sentidos, memórias ou funcionalidades. Grupos sociais muito estáveis e presos aos seus espaços de vida, produzem indivíduos e comunidades cuja visão do mundo está intensamente ligada a essas geografias. Mais do que espaços banais de todos os dias, as pedras, os caminhos, os rios, as casas, os campos…., possuem sentidos mágicos, guardam memórias, evocam acontecimentos que todos conhecem, são habitados por génios, bruxas e diabos que procuram as encruzilhadas e os rochedos onde se escondem tesouros e mouras encantadas.

Como podíamos hoje viver em tais embrulhadas? Não existem lugares e não lugares, creio; existem graus de intensidade funcional ou emocional, sentidos práticos ou mágicos, variações bruscas de indiferença ou comoção em todos os lugares por onde andamos incluindo os sites da internet e nada garante que aí sintamos ou façamos as mesmas coisas da manhã para a tarde do mesmo dia.

Outra coisa são certas mentes muito azedas e apocalípticas que embirram com tudo, com o consumo, com os turistas, com os automóveis, com o cheiro a gasóleo, com os centros comerciais, que perderam um paraíso ou dele foram expulsas, que investem demasiado a falar com os animais e o além, que melhor estariam em comunidades reclusas, penitentes ou meditativas, longe dos venenos do mundo. Quando essas criaturas saem da sua cápsula e dos seus códigos rígidos de visão do mundo, tudo são hecatombes anunciadas, conspirações e não-lugares. À frente, pois.

A Rua da Estrada seria também um não-lugar ao comprido assim como uma passadeira rolante só que parada e nós a rolar em cima; seria trajecto, movimento, ruído, aragem, anonimato, tudo, tudo, menos permanência, e a tal espessura de sentidos e carregos de memórias mais pesadas do que um camião-cisterna.

Vai-se a ver e não. Existem toponímias como Lugar da Estrada que apesar do aperto das curvas e contra-curvas, tem os seus encantos e largos redondos onde a pressa acalma e a carga descansa. No resto é como em todo o lado, palmeiras depenadas comidas pelo escaravelho, altos pinheiros, casas e muros, prados e eucaliptos e isso.

Além disso, não queremos demasiada espessura de sentidos na estrada porque distrai o automobilista: queremos a espessura toda no asfalto e poucos buracos.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

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