“E Deus chamou dia à luz e às trevas, noite. Depois disse Deus: “Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas”. Então Deus fez o firmamento e separou as águas que ficaram abaixo do firmamento, das águas que ficaram por cima do firmamento.

Abrem-se de par em par as janelas da noite.  A abóbada celeste é um manto de escuridão a cobrir os recantos do rio Douro, onde algumas raras vezes acontecem milagres.  Centenas de pessoas atentas e três rios a espelhar o firmamento celeste, assistem na Terra aos preparativos do que vai a ser uma representação teatral de grande dimensão, realizado na foz do rio Arda, a poucos metros do seu encontro como o rio Douro, em Pedorido.

O cenário privilegiado do colossal evento é a ponte centenária e histórica sobre esse rio e as suas margens, à vista da serra de São Domingos e dos acenos solidários que chegam, vindos da outra banda do Douro.

De repente, eclodem as luzes, as vozes, os sons, as imagens ao vivo, outras projectadas em vídeo, ou declamadas com o rigor a que a memória obriga, por actores de teatro de grande nível artístico.

O canto, a música, o circo, a representação da vida à mistura com gritos, transfiguram os caminhos, as casas, as árvores e toda a zona envolvente num processo de regressão às mais estimadas e vivas memórias de gente que sempre aqui habitou. Não por que esses tempos vividos num passado distante tragam apenas as lembranças de dias menos felizes, mas por que todas as memórias são intrinsecamente deste povo, e foram experimentadas pelos seus antepassados, alguns ainda vivos para testemunhar com o rigor que nos baste à compreensão, acontecimentos que muitos de nós procuramos sem êxito esquecer.

Subitamente um clarão mais intenso rasga a noite de todas as recordações. Espíritos alados descaem do céu, suspensos por liganetes, tecidos circenses de textura suave, sedas coloridas dispensas no vácuo, executando estranhos bailados acrobáticos, torções, giros, inversões e simulações de quedas iminentes. Serão figuras brancas saídas do imaginário de quem cria, ou talvez almas etéreas de gente que por ali passou numa outra vida pintada de negro, agora resgatadas do esquecimento pela arte e talento de homens e mulheres do teatro, a evoluírem magnificas, sobre os olhos espantados do mundo?

Desfilam músicas de filarmónica executadas por familiares e amigos de falecidos mineiros do Pejão sobre as balaustradas ferrosas da ponte. Vindas das trevas, perfilam-se figuras de mais homens que esburacavam o chão e que, ao ritmo do hino “Santa Bárbara”, realizam cenas profundamente dramáticas numa representação amadora, mas real como real é o chão que nesta hora pisam. Parece não haver harmonia na cena teatral, tão pouco uma lógica capaz de cegar a mente de quem não quer ver o legado que a história lhes deixou. Pode até parecer caótica a acção aos olhos de estranhos, mas a maioria dos que assistem à sublime exibição, fala a mesma língua, reconhece, portanto, a implícita mensagem.

Uma voz feminina ergue-se das serenas águas do rio. Parece ser um anjo branco, um ser iluminado que canta ou recita as lágrimas ocultas nas funduras do chão. É um lamento suave, uma espécie de redenção misericordiosa do espírito volátil de onde ela provém, a pairar sobre as coisas, enquanto nenúfares de fogo navegam nas águas do rio Arda e criam uma alucinação de luz.

O espetáculo progride nas tranquilas águas do rio e nos púlpitos instalados na ponte e nas margens. O forte efeito visual da realização, o estridente apito que se ouve ao longe, comove os presentes que permitem à imaginação recriar as velhas locomotivas de transporte de carvão que corriam nos carris assentes no tabuleiro da antiga travessia e surgem esta noite vindas das minas do Fojo, envoltas em luzes fantasmagóricas, anunciando a sua presença, são representativas da mais próxima das lembranças do homem. Por instantes, é possível reconhecer, através das feições enegrecidas pelo pó do carvão que transportam, as figuras dos maquinistas dessas composições já desaparecidas. Sentir no denso refolgar do húmido vapor e do fumo produzidos na fornalha que alimenta a caldeira, o odor que a máquina gerava em pleno esforço, ao percorrer os trilhos nessa época.

Não sei quem sou nesta noite de luz e de sombras, tão pouco onde pertenço depois de ter sido e continuar a ser um deles, de ter calcado as travessas da linha do pequeno comboio e o pó negro das bermas dos carris,  a caminho de Germunde, onde os professores Zeca Torrão e Rebelo da Costa  e muitos outros, ministravam o conhecimento todos os dias, na escola onde me sentei ao lado deles  e termos  descido juntos a mais de trezentos metros de profundidade, dentro de uma jaula, até atingir o fundo do poço mestre, onde dolorosamente  os mineiros extraíam o carvão antracite.  Ou serei apenas um passageiro clandestino da luminosa  barca, que veio iluminar com fragor a nossa noite cultural?

É por isso que me curvo perante tamanha prova de capacidade teatral e da cenografia extraordinária trazida pelas mãos de um grande Actor, que viu pela primeira vez a luz do dia neste cenário que agora, humildemente, nos mostra em forma de desafio complexo, é certo, mas de uma beleza e encanto sem igual.

«O amor é fogo que arde sem se ver» – escreveu Luís Vaz de Camões, no seu maravilhoso livro de poesia épica, “Os Lusíadas”. António Capelo desmistificou o grande mestre da literatura portuguesa, quando optou pela definição, «Um Fogo que Arda», para intitular uma das suas mais belas realizações teatrais com a participação activa do fantástico elenco da Companhia de Teatro do Bolhão, e de figuras do povo.

O amor de um homem de inegáveis capacidades artísticas pelas suas origens, é fogo que nos queima por dentro e vai ardendo ao longo das vidas dos que a sua terra amam, apesar de tudo. E todos nós testemunhas desse momento ímpar, o vimos a arder coroado de aplausos, numa inesquecível noite de Julho de 2022.

Aqui ficam imagens do espetáculo e dos momentos que antecederam o seu início → e 

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

Partilha

1 COMENTÁRIO

  1. Bonita descrição de um espectaculo que deveria ter tido honras de divulgação nos nossos meios de comunicação…. Enfim, a cultura cada vez mais esquecida. Sobretudo a que fala sobre o passado e a história de Homens dignos e sofredores…

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here