DEBRUÇADO sobre a lareira situada no canto esquerdo da cozinha, sentado num banco de madeira comprido e remexendo nas brasas já mortiças com um pauzinho que se soltou da lenha amontoada no outro canto do pequeno compartimento, o Lourenço contava aos dois netos, de olhos arregalados e acachapados em frente do calor que o aparelho produzia, histórias tão mirabolantes que só mesmo os cérebros inocentes das crianças poderiam aceitar como verdadeiras.

Farto de rebuscar formas de ocupar o tempo nas longas invernias tão frequentes à beira do rio Douro, era com muita dificuldade que conseguia responder à natural curiosidade dos miúdos, espicaçados pela necessidade urgente de saber e aprender cada vez mais as coisas da vida e também única maneira de matarem as horas que a chuva impedia de passarem na rua a brincar.

Era um homem aparentando ser já velho, mas na realidade teria apenas cinquenta e seis anos penosamente contados nuns tempos pobres e agrestes, que lhe maltrataram o corpo num esforço desumano, desde criança em trabalhos nas fainas da água. Tinha os cabelos matizados de branco. Ao centro de um rosto aguçado e enrugado, aparecia o nariz robusto e, por baixo dele, um farto bigode caído nos dois cantos da boca, ligeiramente queimado pelo fumo do tabaco. Vestia um casaco de bombazina castanha por cima de camisa de flanela azul com riscas amarelas, que lhe entalava o pescoço no colarinho e desaparecia parcialmente, enfiada na cintura das calças de cotim militar. Na cabeça arredondada, a cobrir a cabeleira grisalha, usava uma boina preta já bastante desbotada pelo uso, que dava impressão de já ter incalculável idade.

A vida passou-a à beira do rio. De início, na pesca do sável e da lampreia, mais tarde nos barcos Rabões, a carregar e a transportar carvão antracite para o cais de Campanhã, à vista da cidade do Porto. Dias, meses e anos a percorrer os caminhos do Douro, com ou sem a claridade do dia, num degredo tal que lhe consumira a carne do corpo e os melhores anos da juventude. A remar como um galego num rio que tem as margens pintadas com sangue, desde Barca de Alva até ao Porto. A filha Laurinda, única semente que germinou no campo miserável da sua existência, levou-lha a tuberculose aos vinte e cinco anos de vida, deixando-lhe o amparo daqueles dois cachopos que, além do sustento dos corpos, reclamavam dele cuidados e vigilância permanente. Ávidos de conhecimento e sem as atenções de uma mãe que lhes pudesse satisfazer os naturais anseios, não paravam de fazer perguntas, parecendo trazerem com eles todas as interrogações do mundo e obrigando o velho barqueiro a rebuscar, na pálida e pouco conhecedora memória, as respostas que julgava serem as mais adequadas e sensatas, e   consequentemente constituírem a pedagogia mais apropriada a estes dois seres pequeninos.

A esposa levou-a uma doença desconhecida, apesar dos esforços médicos do doutor Amorim, já lá vão uma pancada de anos. Teófilo, o genro e pai das duas pequenas criaturas, logo que se apanhou sem fêmea, abandonou as duas crias e, enfeitado como um chibo com o cio, partiu atrás da figura esbelta da Esmeraldina de Seixinhos, mulher por que sempre manifestou estranhos apetites.

O velho barqueiro passou lentamente o graveto na borda da chaminé, aconchegou-se um pouco mais para trás na espreguiçadeira e iniciou mais uma narrativa:

– Aqueles uivos dolorosos que se ouviam bastas vezes lá em cima na Cruz de Ferro, inquietavam todo o povoado que, surpreendido no meio do sono, acordava transido de medo. Era um som angustiado como o lamento de alguém a quem roubaram a alma, ou fêmea de cão desesperada a chorar a perda das crias.

Todos no povoado sabiam da existência de lobos na serra da Boneca, mas nunca pensaram que as feras escolhessem precisamente a encruzilhada dos caminhos de Valmourisco, para se exibirem todas as sextas-feiras à meia-noite, numa queixa à lua que fazia estarrecer toda a gente.

Bem procuraram sinais que pudessem indicar o covil desses felinos predadores de aves e animais, mas da mesma maneira que apareciam no ermo, também se evaporavam de forma tão intrigante que se começou a pensar ser obra de seres de outro mundo.

O Tardo chegou a ser acusado na praça pública como o responsável de semelhantes desacatos. E só o Paulo, o mais evoluído do lugar, pessoa que até chegou a ser soldado da Guarda Republicana, cancelou as fortes suspeitas ao lembrar, num ajuntamento popular por baixo da Tília, que o Tardo é completamente surdo-mudo e que só pretende brincar com as pessoas fazendo algumas travessuras, transformando-se em cavalo, boi, ovelha ou qualquer outro animal conhecido. Dizia ele que todas as noites quando descia a Cancelos, figurado em cão, gato ou porca com bacorinhos atrás dela, o endemoninhado saltava à sua frente, no caminho à beira da Fonte da Preguiça.

– Aquilo que berra lá em cima de noite só pode ser o Lobisomem!

Ninguém acreditou nele. Quem em juízo perfeito acreditaria num velho borrachão sustentado praticamente a aguardente e vinho?

Ferido no seu orgulho, o ex-guarda calou-se. O pobre desgraçado, treinado para matar em nome da lei numa cega obediência ao comando da corporação do Porto, tinha ficado célebre em Felgueiras, por ter sido obrigado a matar com um tiro de espingarda Mauser, um humilde lavrador que defendia com unhas e dentes as videiras de casta americana que a ruindade de elementos da polícia, em obediência cega a um governo ditador subjugado a interesses estrangeiros, queria erradicar do país, emudeceu ali na praça publica. Não porque a razão o tivesse abandonado, mas porque a sua alma cheia de remorsos que inutilmente tentava branquear com álcool, o mandou estacar.

Todo um povo, desaproveitando os palpites do Paulo, continuou a procurar as causas prováveis dos desacatos noturnos; se eram lobos, o melhor seria deitar trancas às portas e aos portelos dos gados, enfeitar os cães com coleiras de espetos de aço cravados, porque os bichos com fome até os estorcegam pelo pescoço e, num autêntico festim, devoram as restantes partes dos corpos dos animais, só deixando as cabeças.

Falar, todos falavam a dar ideias uns aos outros, normas que passavam quase todas por vigilância apertada e, se possível, lá muito perto da encruzilhada de onde calculavam vir os gritos dos supostos animais selvagens. Mas das simples conjecturas à prática, era quase impossível porque o medo condicionava todas a vontades, até as dos mais avantajados de corpo.

Aqueles que mais falavam a dizer o que faziam e aconteciam, eram os mesmos que, à meia-noite dessas fatídicas sextas-feiras, se mijavam pelas pernas abaixo ou se refugiavam a tremer de medo nos regaços das esposas quando ouviam os lobos a uivar.

O tempo foi passando vagarosamente por Sebolido e pelas terras em redor. sem que nenhuma das pobres almas se atrevesse a desafiar a matilha que, impreterivelmente, fazia aquele horripilante espetáculo, às sextas feiras de todas as semanas.  Encolhidos nos seus próprios temores, evitavam conversar sobre o assunto, e os lancinantes uivos passaram a fazer parte integrante dos banais acontecimentos da terra com que todos já se tinham familiarizado. Só o terror permanecia, mas agora com dia marcado; todas as Sextas-Feiras, depois do bater das trindades.

Numa noite, o Raposo, que regressava a casa vindo de Aveiro de licença da tropa e calcorreou a pé os caminhos desde a estação de Campanhã até ali, foi surpreendido, ao passar por baixo do lugar das Portelas, pelos uivos aflitivos dos lobos. E com a coragem própria de quem dá gratuitamente o corpo ao manifesto em defessa da pátria, jurou ali mesmo que havia de passar a ferros aquelas ameaçadoras feras.

Se bem o pensou e jurou, também passou rápido à acção e, logo no dia seguinte, fez constar os seus propósitos por toda a população. Porém, desconhecedor das últimas e nova ocorrências da freguesia devido à sua prolongada e forçada ausência, não sabia que teria de esperar uma semana para cumprir a promessa. Mas já todo o lugar o aplaudia com o mesmo entusiasmo com que infelizmente se aplaude um touro que vai a caminho do matadouro. Apesar de correr com lentidão o tempo, a sexta feira chegou embrulhada na esperança de toda uma povoação, que já respirava de alívio só por saber que havia um voluntário para enfrentar as feras. E logo um tropa habituado, pensaram, a lidar com canhões e outros tipos de armamento capazes de desbaratar uma alcateia inteirinha.

Bateram dolentes as onze horas da noite, num sino situado algures do outro lado do rio Douro, e já o Raposo, armado de sachola na mão, esperava os bichos bravos na encruzilhada da Cruz de Aferro. Ainda era cedo, mas ele, na sua condição de militar, tinha de definir antecipadamente as estratégias do combate e, nesse caso concreto, não há nada melhor que fazer, antecipadamente, o reconhecimento do campo onde se vai desenrolar a batalha. O sino voltou a badalar horas, mas o militar nem tempo teve de saber quantas, pois um vulto de homem surgiu no meio da encruzilhada e, num ápice, a cabeça transformou-se na cachola de um lobo.

O tropa venceu depressa a estupefacção e, antes que se lhe arrefecesse o sangue nas veias, avançou resoluto para o animal e espetou-lhe uma sacholada no focinho, que respingou sangue por todos os lados, tingindo o Raposo na cara. Ele sentiu-o como se tivesse sido varado por uma espada feita de gelo. Empunhando a arma numa atitude de fúria, viu o lobo transformar-se novamente em homem e reconheceu naquele corpo a sangrar, o embora filho de mãe diferente, seu meio-irmão Valdemar.

Confuso, desorientado, completamente perdido no centro da encruzilhada, experimentou a terrível dor   do seu corpo a metamorfosear-se e, e em breves minutos, era também ele um lobisomem a uivar como um louco para a lua.

Havia esquecido ou ignorado as instruções adquiridas na tropa e, como não sabia ler nem escrever, nunca consultou os manuais de guerra que diziam que conhecer bem o inimigo era a primeira acção de um combatente. Ignorou outras não menos importantes e nem sequer sabia que quem for o oitavo filho vararão de uma mãe que tenha sete filhas, não escapa a ser uma alma penada. Também que no acto da matança de um deles, quem receber no corpo pingos do seu sangue, virá a ser um lobisomem.

Sebolido acordou cedo, numa paz despreocupada, ao verem o Raposo passar acompanhado pelo irmão Valdemar, a caminho dos campos. Estava vivo, vencera a alcateia a acabara e vez com aquele inferno semanal, pensaram. Todos os habitantes de terra se sentiam felizes e contentes, mas longe de imaginarem que, na próxima sexta-feira, haveria mais um lobo a uivar à lua.

Já há muito que as duas crianças dormitavam, de certo nem ouviram metade da tenebrosa e fantástica história que o avô lhes contou e inventada há séculos, com o propósito de lembrar às criaturas mais jovens os numerosos perigos que as sombras da noite agasalham.

Dormiam já profundamente os anjinhos, sob a protecção do Lourenço que, com aquela renovada ternura que só um avô sabe dar, lhes pegou ao colo e foi deitá-los na mesma caminha, encostada a um canto, nos fundos da pequena sala.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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