Relativamente mais fácil de trabalhar pela sua maciez, o mármore exige rigor e perícia no processo de cinzelação a que o escultor se entrega quando, na busca incessante pelo belo, cria e executa uma obra admirável.
Esta pedra, nobre e translúcida, tem a particularidade de, depois de trabalhada, ser a que mais se assemelha à pele humana de uma forma antropomórfica. Usada por notáveis escultores, principalmente os do Antigo Egito, para representar figuras idolatradas, num processo artístico ou corrente de pensamento, que concedia aos deuses da época, atitudes e sentimentos praticamente iguais aos dos humanos. Assim, ainda hoje alguns cinzeladores o fazem, lidando com a pedra mármore como se fosse a epiderme, o frágil revestimento dos nossos corpos.
Quem passa pelo Campo Mártires da Pátria, na cidade do Porto, depara-se com a enorme estrutura da histórica Cadeia da Relação, agora extinta. Edifício em parte pintado de amarelo, com arranjos lavrados no espaço da base de granito. A dois passos da Torre dos Clérigos, que tem defronte o Largo “Amor de Perdição”, sítio onde a estátua do insigne escritor Camilo Castelo Branco repousa, por vontade e oferta à cidade, pelo escultor português Mestre Francisco Simões, artista plástico natural de Porto Brandão, em Almada.
A estátua representa a profundidade do olhar do artista, sobre a obra prima do escritor, ícone maior do Romantismo, na Literatura Portuguesa. Subliminarmente, quem conhece a história trágico-amorosa de Camilo, pode decifrar uma outra face no calor da pedra moldada e sentir, para além do intimista conjunto e formosura da estátua, as figuras de Ana, Teresa ou Mariana. E as de todas as mulheres contrariadas nos amores, algumas delas personagens desse fantástico romance.
O bloco de mármore, trabalhado por mãos sensíveis que se atrevem a escrever poemas, representa a união de seres humanos, um estreito abraço corporal que, nesta obra, é simultaneamente um gesto doce de ternura, um arrebatamento dos sentidos, um clamor sensual que ali atinge o êxtase da beleza e luz intensa. Precisamente porque nos transporta aos limites mais claros da imaginação, onde a utopia substitui todos os dogmas, no súbito despertar no ser humano, a busca de prazer que move as paixões e os desejos de todos os seres vivos.
Ver com os olhos, sentir com o coração, dar espaço ao corpo e à mente, permitir que juntos expressem a suas vontades sem limitações de hipocrisia ou preconceito, é um acto natural de liberdade, é pura Poesia.
Se nos deixarmos levar nas asas dos ventos que por aquela zona passam, a varrer os lixos mentais das Ruas e Praças circundantes, havemos, alguma vez, de nos debruçar nos varandins, autênticos miradouros que a cidade tem em abundância, e ampliar as vistas sobre os morros de granito, massa enorme de pedra onde a urbe assenta o seu majestático perfil inclinado a sul. Que um outro ínclito escultor, de nome Rio Douro, vem esculpindo ao longo de milhões de anos e dá forma às faces mais austeras do Porto, a nossa Nobre e Invicta Cidade, que ainda conserva inapagáveis memórias dentro dela.
A luz clara de Fevereiro estende-se para além do mar da Foz do Douro. Límpido é o infinito horizonte que se alcança no entardecer solar, perto dos nossos olhos e muito longe da pequenez e contradições de todos os que, apesar de prisioneiros de um tempo, se julgam imortais. O poder não detém homem algum, é a implacável Natureza quem comanda as predestinações do mundo. Da história que vai resistindo a tudo e a todos os falsificadores de narrativas ao longo dos tempos e que nos fala constantemente, através da Literatura, das Artes, das Crenças, dos Costumes, e de tudo o mais que significa a Cultura de um Povo, restam vestígios nas ombreiras dos prédios antigos, que até hoje sobreviveram a apetites imobiliários. E quiçá nas árvores seculares que ornamentam espaços ajardinados, espalhados pela Cidade, de que são exemplos o da Cordoaria e o de Serralves que, como os homens, vão morrendo lentamente, mas de pé.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.