O rio Douro não desagua no mar, entrega-se a ele em Vila Nova de Gaia e essa entrega é um espetáculo de luz e movimento.
De manhã, o nevoeiro desce dos morros envolventes como se fosse um véu de noiva, dissolvendo-se sobre as casas e sobre as águas verde-escuras do rio, onde barcos rabelos balançam com saudades dos tempos em que carregavam pipas de vinho fino, desde o Alto Douro. Outros são hotéis flutuantes perfilados ao longo do Cais das Freiras, a aguardar a partida em viagens de sonho.
Um pouco mais para acima, as caves de vinho do Porto erguem-se como catedrais laicas de configuração retangular, com os seus telhados vermelhos manchados de musgo que guardam segredos de séculos, em barris alinhados como tropas em parada.
Mais para as bandas da foz do rio, na Afurada, o cenário muda radicalmente, o cheiro do sal vindo do mar substitui o doce aroma das uvas. As ruas estreitas, pintadas de azul e branco, serpenteiam entre casas baixas, até ao cais onde redes de pesca exugam ao sol como rendas fabricadas pelo vento, à mistura com estendais, onde secam também as roupas e lençóis das suas gentes.
O mar não é apenas uma vista, é sustento para onde os pescadores partem rumo ao largo, antes do amanhecer em traineiras e barcos de proa alta, voltando com o casco curvado e os porões cheios de sardinhas que mais tarde crepitam nas brasas de fogareiros, plantados na rua, à porta das tascas, acompanhadas por pimentos assados, pelo vinho verde tinto que pinta os lábios das moças e queima a garganta dos homens.
No horizonte próximo, do lado do Porto onde o rio e o oceano se fundem, o farol de Felgueiras espetado na cabeça do molhe, solitário, pisca a um ritmo certo, como um olho gigante cansado, mas sempre vigilante, alerta para a presença de terra, indicando a proximidade da costa e dos perigos para a navegação.
Mariana amassava o pão na cozinha da taberna da família, enquanto o rádio de pilhas tocava alto, um fado antigo, do fadista Carlos do Carmo. A massa colava-se-lhe nos dedos, misturando-se ao salitre que o vento trazia do oceano e entrava pela janela aberta da cozinha. Do lado de fora, Daniel observava, hipnotizado pelo ritmo certo dos seus movimentos, que lhe faziam oscilar os peitos soltos numa dança perigosamente sensual:
– É assim todos os dias, Mariana?
– perguntou, apoiando os braços no parapeito da janela, pintado de azul.
Ela ergueu os olhos, salpicados de pó de farinha:
– O mar não tira folga. Nem nós! – respondeu!
Uma gaivota soltou-se de um bando das centenas que sobrevoavam o porto de pesca e veio pousar no peitoril, debicando migalhas invisíveis. Daniel estendeu a mão, oferecendo-lhe um pedaço de boroa de Avintes. A graciosa ave hesitou, depois aceitou a oferenda e voou, levando consigo o pão e um pouco da magia daquela cena amorosa para o infinito do céu.
Foi numa manhã de maré vaza, quando as gaivotas, grasnando aflitas, se reuniam em revoada sobre as docas, que ela o viu pela primeira vez. Não num barco-hotel, mas num pequeno batel de pesca, igual aos que os homens da Afurada usavam para chegar aos cardumes mais distantes, em alto mar.
– A vida pode esperar, gritou ele fascinado, segurando nas mãos uma rede vazia, mas com os olhos cheios do perfume visual daquela rapariga!
Percebi agora que não quero outra mulher, nem outro rio. Quero escrever contigo a história da vida que me resta!
Ela não sorriu logo. Aproximou-se devagar, molhou os pés na água fria e, por fim, atirou-lhe com um pão ainda quente, feito por suas próprias mãos, naquela manhã:
– Então apanha este pão, e vem ajudar-me a amassar as próximas fornadas.
A metáfora era a luz que brilhava intensamente nos seus olhos apaixonados.
Ainda hoje o mar, esse ladrão de vidas de pescadores, continua a dar-lhes pão com fartura. E o rio, a levar-lhes as histórias de uma vida quase feliz, muito para além de Barca d’Alva, último porto da via navegável.
A Afurada continua a remendar redes ao entardecer, na hora mágica do declinar do sol.
A Vila voltou as costas ao sul e, de peitos sensuais esculpidos na nudez das pedras dos morros, deixa que a cidade do Porto a cobice e lhe tente adivinhar a mais profunda intimidade.
Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook; Amanhecer; Barcos de Papel; Casa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.