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Manuel Resende (1948-2020)

Manuel Resende (1948-2020)

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O POETA e tradutor Manuel Resende, um dos autores mais influentes da poesia portuguesa contemporânea, faleceu esta quarta-feira, vítima de doença prolongada. Tinha 71 anos.

Três livros (“Natureza Morta com Desodorizante, de 1983, “Em Qualquer Lugar”, de 1988″ e “O Mundo Clamoroso, ainda”) bastaram para que Manuel Resende deixasse a sua marca na poesia portuguesa. A irregularidade da publicação foi apenas uma das marcas mais visíveis da singular forma de estar do poeta, conhecido pelo caráter insubmisso e independente.

Essa aversão aos circuitos tradicionais pode ter atrapalhado o reconhecimento público mas não o dos seus pares. Quando, há dois anos, a Cotovia lançou um volume da sua “Poesia reunida”, incluindo dispersos e inéditas, gerou-se à sua volta um raro consenso no meio.

Nas entrevistas que concedeu na altura, comparou a sua escrita a um processo de colagem, enumerando uma longa lista de influências, em que tanto estavam presentes os clássicos como bandas de rock.

O seu percurso como tradutor foi igualmente relevante, tendo vertido textos e poemas de, entre muitos outros, Konstantinos Kaváfis, Odysséas Elytis, Kiki Dimoulá, Franz Kafka e Bertolt Brecht.

Natural do Porto, Manuel Resende foi amigo próximo de Manuel António Pina e, tal como o Prémio Camões, também passou pela redação do “Jornal de Notícias”.

Publicado in Jornal de Notícias

Rui Manuel Amaral lembra o amigo

Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo.

Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século.

Cada novo leitor que esse livro conquistou é como um sinal de que o nosso mundo entrou nos eixos. A grande poesia do Resende deixou de ser um segredo guardado por meia dúzia de leitores fanáticos. O mapa literário do país assumiu, por fim, a forma correcta.

O Resende não jogou uma única carta neste jogo. Não fez nada para que os poemas fossem mais ou menos conhecidos. Não lhe competia a ele. Ele era apenas um poeta. Escrevia porque tinha de escrever.

Os três livros que publicou, antes da «Poesia Reunida», de 2018, surgiram por intervenção de amigos ou em resposta a convites de editores. A «Poesia Reunida» também. Não foi o Resende que a propôs e não foi ele quem a organizou.

Nada disto tem a ver com alguma espécie de arrogância ou falsa modéstia. É exactamente o contrário. Trata-se de pura timidez. Da mais pura noção de que nada disto é assim tão importante. De que a literatura é muito maior do que qualquer escritor. Ninguém que eu conheça estudou e amou mais a literatura. Conhecia-a a fundo, sílaba após sílaba, verso após verso, capítulo após capítulo.

Traduziu milhares de páginas. Dos grandes, mas também dos outros, dos chamados «menores». Anos e anos de trabalho deram-lhe a sabedoria de pôr as coisas em perspectiva. A literatura é feita de tudo isto: grandeza e miséria, humildade e presunção, silêncio e fogo-de-artifício.

Talvez por isso se tenha transformado num misto de sábio e «palhaço triste», no sentido chaplinesco do termo. Não sei explicar melhor. Havia nele uma qualquer tristeza profunda, que embrulhava em humor e auto-ironia. Porque todos somos feitos da mesma matéria: poeira da estrada e pó dos livros. Porque a história acaba da mesma maneira para todos. Não está certo nem errado, é simplesmente assim.

Talvez isto explique também a dose de pessimismo com que olhava para o mundo, apesar do seu coração ter batido sempre à esquerda. Desde a juventude, no Porto, até ao último dia da sua vida. Não há camarada dos tempos da luta política que não o adore. Não conheci companheiro ou adversário que não gostasse do Manuel Resende.

O Resende concedeu-me a sua amizade e eu nunca tive nada de especial para lhe dar em troca. Tudo o que podia e posso fazer é ler os seus livros. Uma e outra vez. E tentar aprender com ele os pequenos truques para enganar a morte até onde for possível.

29 de Janeiro de 2020. (A pedido do Diogo Vaz Pinto.)

Dois amigos: Lucas & Manuel

Tínhamos chegado a casa, após a viagem desde a vivenda do Manuel e da Piocha na Atalaia, quando o telemóvel tocou. Era o Manuel, perguntando pela viagem, mas na verdade excitado e ansioso por contar uma história. Tinha a ver com o Lucas, que como sempre correra atrás do nosso carro à saída, bem para lá do portão da casa, até que acelerei para ele desistir e deixámos de o ver. Desta vez, porém, não voltara para casa no prazo habitual, pelo que a certa altura o Manuel teve de sair à sua procura. Primeiro a pé, depois de carro, quando percebeu que ele não estava por perto. “E sabe onde o encontrei? No viaduto sobre a auto-estrada, a olhar no sentido do Norte. Estava a olhar para a estrada que vocês tinham tomado e estava ali parado. Não é incrível?” Concordei, claro, assombrado mais uma vez com o Lucas, e fui contar à Carolina, que ficou tão comovida como eu e como o Manuel.

O episódio que desejo agora acrescentar, saltando uns anos, foi o telefonema do Manuel anunciando a morte do Lucas. Estava velho e alquebrado já na nossa última visita, o passeio que fazíamos os dois ao fim da tarde por alguns quilómetros já lhe custava, parava muitas vezes e bebia água onde e sempre que podia. Continuava a desaparecer da vista de vez em quando, suponho que para perseguir algum coelho ou apenas e só a sua memória olfativa. Naquele dia o Manuel estava abalado, deu-me a notícia da eutanásia do Lucas por meias palavras, fiquei sem saber o que dizer, acho que disse apenas “Que notícia tão triste, um grande abraço, Manuel”, ele tartamudeou alguma coisa, “Pois, pois”, desliguei e fui dizer à Carolina, ficámos abraçados a pensar no Lucas.

Tenho dificuldade em pensar nele sem pensar no cão do grande poema de Manuel António Pina, “O nome do cão”, que começa assim: “O cão tinha um nome / por que o chamávamos / e por que respondia, // mas qual seria / o seu nome / só o cão obscuramente sabia”. Nunca conheci um cão com um nome tão justo como o Lucas, e se calhar por isso nunca conheci um cão como o Lucas: evangelista da alegria, bicho luminoso, como no étimo grego (tinha de ser) de Lucas, com aquele dom que Pina tão bem traçou: “Onde nós não alcançávamos / dentro de nós / o cão ia”. Para mim, desde cedo o Lucas integrou a família de cães que a literatura produziu desde Homero, e que em português conta, em posição de destaque, com o cão tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, ou o seu primo próximo, o Kazukuta, de Ondjaki, para não referir os cães de Maria Velho da Costa ou de Maria Gabriela Llansol. Mas foi o cão do poema de Pina que fez do Lucas para mim símbolo de todos os cães, e por isso mesmo, já em vida, pensar no Lucas era pensar no poema de Pina e ao invés. Quando vou às escolas falar das Humanidades aos jovens estudantes, mostro sempre o poema de Pina, para abordar a chamada “questão animal” nas Humanidades de hoje, pois nenhum texto como esse dá a ver aquilo que atravessa e aproxima humanos e cães. Os estudantes ficam em silêncio, quando acabo de ler o poema, e quando recomeço a falar sinto que falo do Lucas.

No primeiro livro do Manuel, num poema em que se sente a sombra forte de Álvaro de Campos, “Crítica da Razão Pragmática”, na secção 2 surge uma manifestação do animal – “Aqui onde sou um animal de pequeno raio de ação” – ainda pouco convincente, na economia do poema. No segundo livro, porém, o poema “Discurso por causa de coisas que podem acontecer”, um dos grandes poemas do Manuel sobre a morte, abre de uma forma fulgurante, convocando o animal que agora é já um cão: “Poupai-me à morte lenta, violenta, / Que o homem é um cão que perdeu o dono”. É difícil imaginar um começo e uma imagem mais brutal: um cão que perdeu o dono. Como lê-la? Uma referência à secularização e à perda de Deus? Mas nesse caso, a perda seria também emancipação e não seríamos tomados pela sensação lenta, violenta, da coisa bruta que os versos transmitem, nas suas 10 sílabas com acentuação assimétrica, por causa da rima interna entre “lenta” e “violenta”, decisiva no poema. A coisa bruta vem antes disso, na perda do mundo, isto é, da ligação ao dono, no andar sem rumo, à toa, como quem se reconhece no exílio. O dono do cão não é aqui uma figura da posse ou do mando, mas antes aquele que, como no poema de Pina, dá nome ao cão, inserindo-o assim na família. Porque nenhum cão tem dono, mas talvez o espectro da morte faça o cão, que todos somos, sonhar com o dono que o chama pelo nome e leva pela trela.

Não sei se tem a ver com isto, mas há um outro poema do Manuel que gostaria de relacionar com o Lucas. Chama-se “Na auto-estrada” e surge no terceiro livro:

Ainda posso perceber
Esses miúdos nos viadutos
Que atiram pedras aos carros da auto-estrada.
É um gesto eficaz
Que matou alguns caixeiros-viajantes,
E até famílias inteiras,
É pura malvadez
E o mundo precisa de pureza.

Mas como se justificam esses que nos acenam
Com alegria ao passarmos?

O mundo precisa de pureza, afirma-se no final da primeira estrofe, antes da pergunta final. A pureza da malvadez, neste caso, uma figura ético-moral intratável, como naquelas ocorrências do mal que nos deixam sem palavras e sem saber como reagir ou pensar. Tudo isso é, na lógica ético-política do poema, compreensível ou justificável. O que é sem justificação, e, claro, para lá da nossa compreensão, é a pureza da alegria daqueles que nos acenam quando passamos, crianças noutros automóveis, pessoas à beira da estrada, cães que correm, como o Lucas, ao lado do carro. O que é sem justificação é aquilo que justifica uma vida: a alegria, a amizade, a poesia.

No poema de Pina, a morte do cão relança a questão do seu nome: “Um dia chamámos pelo cão e ele não estava / onde sempre estivera: / na sua exclusiva vida. // Alguém o chamara por outro nome, / um absoluto nome, / de muito longe”. Admitindo que, algures, alguém possua o segredo do nosso absoluto nome, gostaria de supor que o verdadeiro nome do Lucas é Manuel e que o absoluto nome do Manuel é Lucas. E que ambos deixaram o mesmo testamento, que consta do tão belo poema “Um filósofo”, de Mika Ahtisaari, esse nome apócrifo de Manuel Resende, e que se riem, por isso, de nós. Transcrevo os últimos versos:

Duas frases:
Ҥ1. Quero ser cremado nu.
§2. A vantagem de morrer é que posso deixar a louça por lavar”.

[Texto lido no Mira Forum, no Porto, a 8 de fevereiro de 2020, em sessão de evocação de Manuel Resende]

Publicado por Osvaldo Manuel Silvestre in http://www.osvaldomanuelsilvestre.com/

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