A ILHA dos amores não é apenas produto de alucinada e demente miragem extraída de um fantástico e mirabolante sonho: ela existe na realidade ali na confluência do rio Paiva com o Douro que as separa, tendo na margem esquerda do rio Douro as milenárias povoações de Escamarão e Castelo, a primeira no concelho de Cinfães no distrito de Viseu e a segunda no concelho de Castelo de Paiva no distrito de Aveiro como sentinela que alerta, vigiam incalculável e valioso tesouro. Aparece aos olhos dos navegantes como incrível quimera e esplêndida visão

A ilha não é consequência do fraccionamento de uma porção de terra que se soltou de qualquer continente, predicado de tantas outras maravilhas dispersa na imensidão do mundo. Não, a ilha dos amores foi edificada pelo génio e engenho destes dois rios que num gesto altruísta, quiseram deixar para memória futura, um perpétuo símbolo vivo de união a lembrar à humanidade que é sempre possível fabricar a fantasia de um sonho e que, para tal efeito, basta uma indomável vontade de existir. De longínquas paragens, talvez dos penhascos sobranceiros a Paradinha, Janarde ou Meitriz, talvez de mais longe de aldeias isoladas  e matizadas com rústico xisto, edificadas nas beiras do rio Paiva lá para os lados de Alvarenga e de Castro Daire, arrecadaram penedos, fizeram-nos rolar no caudal da Paiva pelo vale abaixo e ali na foz os juntaram com todo o afecto  deste mundo, como quem constrói um templo em memória de feitos milagrosos ou ainda de tributo a notável ou insigne personagem.

Quem vem dos lados de Várzea do Douro ou de Alpendorada, terras do distrito do Porto e do concelho de Marco de Canavezes e desce em peregrinação pelos caminhos tortuosos que rabiscam a agreste formação dos montes até ao lugar de Bitetos que tem um cais, depara com essa pérola que se soltou do colar da distante serra prenhe de volfrâmio. Montemuro.

Havia um barqueiro a morar nos restos de uma pequena casa deixada por povos ancestrais, fenícios talvez ou outros que para ali vinham nas pescas sazonais e era o único habitante desse jardim suspenso nos afáveis e carinhosos braços dos dois rios que por lá se encontram. Dizem as mais antigas lendas que apenas   demandava solitário o rio Douro quando o sol moribundo falecia no horizonte,  as aves se recolhiam e agasalhavam temerosas nos aconchegantes ninhos e uma paz doce se abatia sobre esse vale imenso onde um rio se deixa amar por outro rio. Que também nas alvas madrugadas de invulgar claridade em que múltiplas e indistintas colorações se espalhavam sobre a transparência lindíssima das águas provocando enfeites de maravilhosos cenários jamais vistos em parte alguma deste mundo, um batel cor das vestes de ermita que  parecia só flutuar como levitação de divindade na ampla liquidez de água e os timbres melodiosos de uma guitarra, harmoniosos sons que levados pelas brisas se faziam ouvir em ecos por todo um rio, surgia do nada aquela estranha aparição.

Conta-se que o barqueiro cantava como um afinado rouxinol e que a sua voz transmitia tal feitiço, que até as águas descansavam do cansaço do seu eterno caminhar para escutar a insólita e belíssima serenata. Às crianças que viviam nas casas dispersas um pouco pelas duas margens dos rios, contava histórias lindas, aventuras coloridas com poéticos perfumes que dizia ter vivido em paragens remotas, em países que apenas existem na fantasia da mente de um ser tão puro como um anjo.

Perderam-se já tantas memórias, o tempo apagou-as, mas na ilha e nas noites em que a lua aparece deslumbrante no céu, ouve-se uma estranha melodia naquele local. Sons que parecem ser de cordas de instrumento e que os marinheiros que por lá passam tentando desmistificar essa aparição, dizem ser o vento a fustigar o denso arvoredo.  Mas efémera é sempre uma ilusão, essa ilha pode tornar-se num mito que perturba, que alucina os navegantes e muita gente que se  confunde no aglomerado imenso da indiferença, apanágio de um mundo que se tornou severo, em que cujos os habitantes julgam que existem sozinhos. Os sonhos são apenas de alguns seres vivos que deslumbram a humanidade, os outros, a grande maioria de nós, morrem-nos falidos nos olhos, nos acordares agitados do cotidiano em que todas as lembranças se desvanecem como se por magia. São poucos os que conservam o perfume dessa circunstância fantástica, geradora de mais e de melhor mundo cedendo sem a menor hesitação aos plásticos clamores que vida fora de um sonho produz.

Fina-se então o encantamento, dissipa-se a ilusão, constata-se que só o barqueiro da ilha dos amores cumpriu sereno e obedeceu aos macios, generosos e belos apelos da mãe natureza.

Conta-se que era madrugada. Serenavam ainda as margens do rio Douro e os primeiros alvores da manhã que se adivinha vir a ser cálida se espreguiçavam na água, foi o momento em que a barca se afastou pela última vez do embarcadouro e se fez solitária ao rio.

Pensaram que tinha partido, que tinha deixado o recanto da ilha sem dizer adeus ou outra saudosa recordação que ficasse a lembrá-lo na foz do rio Paiva. Dizem alguns que voltará, que um dia quando as águas atingirem o zénite do seu esplendor espelhando a branca luz da lua, ele emproará no horizonte interminável e ouvir-se-á então o trinar  dolente de uma guitarra matizando com sons os poentes onde ele se perdeu certo dia e que trará nos seus olhos cor de água, a magia e o deslumbramento desaparecidos. Porém o que poucos ou nenhuns querem admitir, é que ninguém regressa do reino dos mortos e será nesse outro paraíso inatingível em vida e tão distante da compreensão humana, que o barqueiro continua feliz a navegar.

Ainda hoje se ouvem lamentos nas beiras do rio, choros dos puros que tão perto estiveram de um sonho que deixaram partir e provavelmente nunca mais voltarão a estar tão próximos de um deus.

Estão agora a secar as roseiras bravas que enfeiravam aquele pedaço de céu, choram os canaviais das margens da Paiva que brisas perpétuas fazem estremecer levemente, tombam sobre a água os frondosos amieiros e até as Ninfas sedutoras, companheiras e musas dessa figura lendária, perderam toda a beleza que outrora tinham tornando-se em apenas mulheres. Dizem outros, aqueles a que a fantasia provocou estranhas convicções que ele nunca partiu, , que está ao alcance de um sorriso, mas que por amor se deixou enfeitiçar, que entregou o coração, que ficou preso a uma dessas traiçoeiras amantes que o rio tem, à mais bela de todas as Ninfas que alguma vez se criaram no rio e que como um louco desesperado, a morrer de saudades se transformou num dos rochedos da ilha.

– Está encantado, diz lá em baixo na areia da praia com olhos crédulos de vidente uma velhinha que mora sozinha acolá em Escamarão de cujo o rosto carcomido pelos anos, deixa adivinhar ser um sepulcro de saberes. Segurando nas enrugadas mãos as redes com que ainda pesca o sustento da casa, põe os olhos baços na Igreja de Nossa senhora da Natividade e vaticina que só poderá ser quebrado o encantamento  quando a beldade, a maravilhosa filha de Zeus, senhora e dona da sua paixão, deixar os seus rubros lábios posarem delicadamente nas faces austeras do penedo que tem esculpido um coração e que o rio Douro com estranha meiguice e banhado em lágrimas, todos os dias cobre de beijos.

Deserta é agora a ilha dos amores. As gaivotas peregrinas que de distantes mares, demandavam a barra do Douro no Cabedelo,  movidas pelo chamar doce do barqueiro se faziam para montante do rio seguindo até à terra dos sonhos e em voos magníficos sobrevoavam aquele pequeno espaço, desertaram dali e deixaram ainda mais triste o idílico e maravilhoso pedaço de terra que o rio Douro sempre namorou.

SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro;  Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook,  Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.

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