1867
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A velha

A velha

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1867

UM GRANDE RIO COMO TU tem sempre imensas histórias para contar. Eu sei que te enfastias a remoer o passado mas há momentos em que apetece relembrar. Tu és um colosso feito de água, conservas a sapiência dos ilustres, a altivez dos nobres, a força dos invencíveis e, apesar dos tantos atributos que te conferem poder, nunca deixaste de ser um rio, apenas um rio.

Deixa-te estar sossegado na calma do teu leito que eu conto coisas que me surgem na memória. Tudo o que te rodeia é dinâmico, a evolução é uma constante na vida de um planeta como a terra. É nessa bola gigante que vivemos e será nela que teremos de permanecer até ao fim dos nossos dias. Tu ficarás um pouco mais a observar a vida a renovar-se e a palpitar com outra força até ao final dos tempos. Depois tudo serenará entregue ao silêncio das coisas extintas até que um dia das cinzas que ficaram a pairar no universo, surja uma nova forma de vida. É um processo repetitivo, principio e fim, fim e princípio. É a esta a fórmula secreta a quem os humanos designam por eternidade. Falemos agora de pessoas e situações de vida que mais não foram que destinos desditosos, obra de uma humanidade que demorou demasiado tempo a compreender o verdadeiro significado da palavra solidariedade.

A velha estava sentada na pedra à tua beira. As roupas eram farrapos negros, as roupas das velhas são quase sempre negras. Segurava nas mãos um pedaço de rede de pesca apodrecida que desdobrava lentamente e parecia que desfiava um rosário sem princípio nem fim.

As mãos da velha eram compridas, os dedos mostravam toda a estrutura esquelética sem carne e com as veias azuis salientes que pareciam raízes de salgueiro fora da terra e deviam estar agarradas aos ossos cobertas pela pele engelhada com manchas castanhas e pretas. A velha tinha a cara enrugada como um papel amarrotado num bolso e parecia queimada por um lume estranho e tinha uns olhos da cor das tuas águas mas apagados reflectido a solidão e metidos ao fundo de duas cavernas fundas e usava um xaile negro a cobrir-lhe os ombros e um lenço de merino preto por cima dos cabelos cor de cinza. Via-se um pedaço dos cabelos da velha a sair por baixo do lenço na testa engelhada e eram fios de pó cinzento a desbotar ao sol.

A velha olhava para as mãos enrugadas sem carne e com veias azuis salientes que pareciam raízes de salgueiro de fora da terra. O rio reflectia o rosto da velha e ela via a sua cara engelhada que lhe parecia uma folha de papel amarrotada num bolso e queimada por um estranho lume.

Às vezes a velha mexia com um pauzito na tua água e desfazia a imagem espelhada que ficava a contorcer-se num esquisito bailado de água e cara enrugada queimada por um estranho lume. Depois apagavam-se as ondas e aparecia na água outra vez a cara enrugada da velha reflectida como se fosse num espelho.

Antes tinha as mãos com a pela macia e mimosa e não se viam as veias azuis que parecem raízes de salgueiro de fora da terra. Antes, o rosto da velha era liso e as faces eram mimosas, coradas e os cabelos eram fortes e negros e caíam numa trança pelas costas abaixo. Antes, os olhos da velha eram vivos da tua cor e brilhavam como tu brilha agora.

Tu conheces os segredos da velha, viste-a nascer e crescer, observaste-a a ser feliz e depois desmaiar como um sol de Outono. Agora entras-lhe na cabeça e só encontras lá coisa e pessoas mortas como num cemitério abandonado.

Antes, a velha não era vadia e Deus não estava zangado com ela e podia ir falar com Ele à capela. Antes, a velha era nova e corria-lhe nas veias um sangue atrevido e a carne cobria-lhe os ossos e a pele era lisa e não era parecida com um papel enrugado no bolso. Quando passava nas ruas de canastra de peixe à cabeça, parecia que bailava ao som ritmado de orquestra sinfónica a interpretar O lago dos Cisnes de Tchaikovsky e os peitos cheios, saltitavam numa dança sensual onde a firmeza dos bicos parecia que a todo o momento iria perfurar o frágil tecido da blusa de chita, soltando-se espontâneos e livres como livres sempre foram. Como na peça, ela era então um cisne orgulhoso que passava e, da noite da vida em que fora apenas princesa, tudo tinha ficado para lá da maldição. Os homens viam-na passar risonha e brejeira e ficavam loucos e cegos pela beleza e luz intensa que irradiava dos olhos e imaginavam fantasias eróticas que nunca tinham vivido.

Antes era nova, teve namoros mas nunca casou e teve três filhos por causa do sangue atrevido que lhe corria nas veias mas tiraram-lhos por que ela era vadia e os filhos tinham piolhos na cabeça. Levaram-nos para um orfanato do Porto há quinze anos e ela nunca mais soube deles. Tirara-lhos por causa dos piolhos que tinham na cabeça e porque ela era vadia.

Antes chamavam-na de Luciana o seu nome de baptismo. Depois, apelidaram-na de velha como se inadvertidamente alguém tivesse apagado o seu nome verdadeiro no almanaque da vida.

Depois a carne sumiu-se do seu corpo formoso e ficou só uma montanha de ossos que a pele e os músculos articulavam e permitiam mover-se.

Uma vez o senhor Oliveira chamou-lhe puta. Antes o senhor Oliveira servia-se dela na casa das abelhas no Vale dos Lobos. Dava-lhe vinte e cinco tostões para se servir dela. Uma vez uns pequenitos da escola chamaram-lhe vadia. As crianças imitam os adultos quase na perfeição. Uma vez as pessoas todas chamaram-lhe porca e vadia. Nunca lhe chamaste vadia e porca, fazias estranhos bailados quando reflectias a imagem dela que tinha os cabelos negros e fortes, a pele macia e mimosa, os peitos duros e os olhos eram da tua cor e brilhavam como tu brilhas agora.

Uma vez as mulheres que obedeciam aos maridos e algumas que também iam à casa das abelhas e as outras que não deixam os piolhos passear na cabeça dos filhos, bateram-lhe, arrastaram-na pelo chão, chamaram-lhe vadia e porca e rasgaram-lhe o vestido de chita. Antes sentou-se na pedra à tua beira a chorar por lhe chamarem porca e vadia e também com saudades dos filhos e porque pensava que Deus estava zangado com ela por ela ser vadia.

Deus não fala com mulheres vadias, Deus só fala com mulheres que têm maridos, que obedecem aos maridos e não deixam os piolhos andar na cabeça dos filhos, pensava. Zangou-se com ela antes e, ela agora não pode falar com Deus.

Uma vez lembrou-se dos filhos que lhe tiraram e chorou sentada na pedra à tua beira. Uma vez, lembrou-se da mocidade, dos amores perdidos, de quem a enganou e prometeu casamento e voltou a chorar sentada na pedra junto de ti.

Uma vez lembrou-se que não tinha casa nem pão para dar aos filhos, que o senhor Oliveira já não se queria servir dela e que não se importou quando lhos tiraram para internar no Porto. Diziam que os filhos eram de pai incógnito e o senhor Carvalho escreveu isso nas cédulas que lhe deu no Registo Civil. Ela sabia quem era o pai deles mas o senhor do registo não lhe perguntou nada. Ela ia dizer mas o senhor Carvalho disse para se calar, que era vadia e ninguém iria acreditar nela.

Vinha um barco lá em baixo a subir lentamente a tua corrente. A velha levantou-se e passou uma mão na cabeça, ajeitou o lenço, olhou para o barco que vinha lá em baixo e o pedaço de rede podre que segurava na outra mão reluziu quando o sol lhe acertou em cheio.

A velha viu o barco passar cheio com pipas vazias a caminho do Alto Douro e sentou-se outra vez na pedra à tua beira. Nunca soube por que era junto de ti que a velha procurava consolo mas sei que tu tinhas uma certa afeição por ela. Notava-se quando fazias aquelas estranhas danças de água e rendilhados de espuma para lhe agradar e na serenidade em que te convertias sempre que ela se sentava na pedra à tua beira. Se queres saber a minha opinião, eu acho que tu sabes escolher entre os humanos aqueles que melhor exprimem a vontade de Deus. Decerto é por que sabes distinguir melhor que ninguém a diferença entre os puros de coração e os maculados pelos preconceitos esse sentimento pejorativo em relação a tudo o que é diferente. Ou será que tu representas na terra a consciência universal que tende a aperfeiçoar as relações humanas?

Por Manuel Araújo da Cunha publicado originalmente in Palavras – Conversas com um rio, edição Edium Editores, março 2011.

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