Amanhã cedo vou querer traçar rabiscos e linhas de como será a minha caminhada nas nuvens. Vou lustrar as sapatilhas de vidro e gravar minhas iniciais. Porei curativo no mindinho torto e lixarei unhas. Nem todas!

Resgatarei no fundo do bolso meu lenço com um símbolo bordado. Como cartógrafo medieval com dotes de pintor, tomarei o avesso do lenço para definir previamente o tipo de mudança que farei na paisagem ao chegar de surpresa num lugar sem nome. Definir, como recurso contra a evasão de imagens e antes de tomar destino, se ainda irei arrebanhar camelos, tigres ou dromedários. Dromedários, tigre e camelos, búfalos às vezes, sonham com claustros imaginários. Infinitos cercados de nuvens vazando animais e os insetos que rodeiam suas fezes. Quanto aos primeiros animais, ainda não sei se os levarei. Destinos: também não tenho. Como levaria em segurança animais que desconheço se jamais guardei rebanhos ou li poetas portugueses. Sei que perco animais no lusco-fusco dos dias, quase sempre na hora em que os animais são apenas silhuetas e mugem com o desaparecimento do astro. Para mim, definir agora sobre as possíveis companhias nessa viagem – se camelos, se tigres, se dromedários – não é apenas importante porque descobri ontem que nada constava nas primeiras anotações, mas porque no mundo nem tudo é tangível e verossímil.

Aos cálculos, embora possam ser necessários, uma vez que é certo encontrar Calvino com infindáveis projetos de cidade, não destinarei nenhum cálculo. Darei a ele duas plantas baixas de cidades unicelulares sem adereços, sem teias ou pernas, sem pássaros no pentagrama da memória, sem edificações de qualquer peso, sem habitantes com cabelo, língua ou voz, sem taxas ou emolumentos, e, a essas supostas cidades, não darei nomes de mulheres. Mas, ainda assim serão cidades! Não com nomes como os de Amélia ou Amália, mas o de ameba. Continuo a fazer apostas assim porque, cá como os meus labirintos, penso que talvez seja suficiente aprofundar imaginações que já nascem nas nuvens, afastando os pensamentos e o pensador, de pedras, de alicerces, colunas ou fundações. Tudo terá forte impulso de improviso. Deixarei entrar pelos poros e tomar conta do corpo a sorte do olho estrábico que fisga a letra amorfa antes da palavra e deixa a porta aberta. Se tiver lido Borges na noite anterior e na ilha imaginária, onde tudo é água, saberei que livros, bibliotecas caóticas e em círculo também se sonham labirintos abundantes.

Não sei por que preciso tanto das coisas inverosímeis e impalpáveis, mas, com Sócrates, não sei pensar sobre a morte.

Josafá Paulino de Lima, mais conhecido por Josafá de Orós, nasceu em Orós, CE, (1965). Reside em Campina Grande, PB, desde 1970. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). É sociólogo, artista plástico, poeta, produtor cultural, assessor em projetos de desenvolvimento, diretor executivo da Fundação Universidade Camponesa, sócio dos Institutos Históricos do Cariri Paraibano e do município de Pocinhos, na Paraíba. No campo artístico tem trabalhado com pesquisa, produção e exposições principalmente em xilogravura…

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