NO tempo em que o Brasil se aproxima dos seus duzentos anos de independência e quase cento e trinta anos de república, o país vive um dos momentos mais decisivos da sua história. Tão decisivo que ultrapassa os partidarismos que dominam o debate político, e que não pode ser compreendido isoladamente dos graves desafios ambientais que o planeta enfrenta. No entanto, existe um défice de reflexão sobre as questões de fundo que conduziram à crise atual, essencialmente ligada à persistência de um modelo económico que caminha para um desastre de proporções continentais, mas que teimosamente resiste ao seu próprio declínio… mais ou menos como a pesca do bacalhau.

Com a recente tentativa de impeachment da Presidente Dilma Roussef, o país nunca se viu tão claramente dividido entre dois lados opostos: os que denunciam este processo como um golpe e uma ameaça à democracia, e os que enfatizam os níveis de corrupção que vieram à baila com os sucessivos escândalos denunciados pela operação Lava Jato, reclamando a destituição de Dilma e a instauração de um governo de salvação nacional. As escutas divulgadas na passada terça-feira envolvendo o Ministro interino Romero Jucá mostram uma realidade mais sombria, segundo as quais o afastamento forçado de Dilma tinha como fim estancar as investigações da operação Lava Jato para “abafar o caso”. Estas revelações vêm corroborar as denúncias dos primeiros, enquanto os segundos sustentam que a substituição do governo é necessária para restaurar a economia e a confiança dos “mercados”. O facto que o leitmotiv para o impeachment consiste em manobras fiscais praticadas pelos anteriores governos (as chamadas pedaladas fiscais) suscita, no entanto, sérias dúvidas quanto à legitimidade deste processo. A forma como este foi conduzido e os atores que o protagonizaram, afeta gravemente a credibilidade das mais altas instituições democráticas brasileiras, colocada em suspenso até ao seu desenlace.

Nas ruas e nas redes sociais, o debate encontra-se ideologicamente polarizado entre socialistas e conservadores, apesar do governo deposto ser uma coligação entre estes. No coração das forças corporativas que patrocinam as campanhas eleitorais das várias fações políticas, três lobbies são fortemente representados direta e indiretamente no parlamento: o setor do agronegócio, o setor de energia e o setor de mineração, este último mais intimamente ligado às grandes empresas de construção. Este tripé de influência configura um modelo económico caracterizado por um sistema produtivo baseado na exportação primária de recursos naturais, a dilatação da fronteira agropecuária para áreas naturais pristinas, e a mais recente expansão da indústria petrolífera. Enquanto a influência do agronegócio tem profundas raízes históricas no patrimonialismo brasileiro, o setor da energia é um poder político dominante desde a ditadura militar. O setor da mineração por sua vez, manifestou mais claramente sua influência política durante as últimas décadas de governos democraticamente eleitos. Este setor exerce influência a favor de interesses consonantes com a agenda ruralista do agronegócio, promovendo mudanças na Constituição contra direitos e demandas de povos indígenas e influenciando a revisão de leis federais como o Código Florestal aprovado em 2012, a qual o Ministério Público acusou já inconstitucionalidade de vários artigos.

Se este modelo económico reflete uma forte dependência do caminho percorrido pelas instituições brasileiras até à sua consolidação atual, os governos de Lula da Silva e Dilma Roussef foram incapazes de transformar significativamente o status quo. Pelo contrário, foram os compromissos estabelecidos com os segmentos mais conservadores que permitiram obter apoio parlamentar aos programas promovidos por Lula, mas que também limitaram a margem de manobra do PT para intervir em áreas críticas que tem sido cronicamente afastadas da agenda política por sucessivos governos. Os méritos indisputáveis de Lula para gerir interesses divergentes de difícil conciliação ajudou a obter concessões dos (e até alianças com) forças políticas mais ou menos reacionárias durante um período de crescimento económico extraordinário. Num parlamento marcado por inúmeras forças partidárias, a estratégia de Lula permitiu estabelecer compromissos entre suas políticas de cunho assistencialista e um capitalismo fortemente condicionado pelo Estado. Esta estratégia contribuiu para a crença de que a “aceleração do crescimento” é fundamental para lutar contra a pobreza e aumentar as oportunidades para os segmentos da população mais desfavorecidos. Com efeito, o Brasil nunca experimentou uma distribuição de renda como ocorreu entre 2000 e 2012, e todas as pesquisas em indicadores económicos apontam claramente uma melhoria massiva das condições de vida da população brasileira durante a última década. Desde 2006, quando o PT se aliou com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) a abertura e popularização do crédito permitiu alargar a base de consumo interno e foi assumido como um fator determinante para estimular a economia doméstica.

Desde 2014, este modelo económico tem mostrado sinais claros das suas fragilidades. A concentração da economia brasileira na exportação de matérias primas com pouco valor acrescentado criou uma situação de dependência excessiva dos mercados globais. A desvalorização das commodities atingiu gravemente as exportações brasileiras, enquanto os preços do petróleo caíam vertiginosamente, agravando ainda mais a situação desastrosa da Petrobras. O gigante petrolífero já devastado pelos crimes de corrupção organizada sob investigação, experimentou o maior prejuízo de sempre no quarto trimestre de 2015, na ordem dos 35 bilhões de Reais. Estas fragilidades resultaram numa perda substancial da base de apoio do governo. Entretanto, desde o início deste ano, a Petrobras tem subido em bolsa de forma espetacular (mais de 100%). A esperança do setor permanece na recuperação do preço do petróleo para alimentar uma cadeia complexa geradora de renda e emprego, que procura constantemente pontos estratégicos de apoio para a sua contínua reprodução. Esta cadeia não é só dependente de um permanente aumento do seu tamanho para suportar a redução de suas margens de lucro privado, mas também da construção de infraestruturas e provisão de energia, requerendo um forte apoio do Estado em investimento público, bem como o licenciamento de novas concessões em áreas com riscos cada vez mais elevados. Sem embargo, em condições normais, muitos dos projetos que aguardam a assinatura dos ministérios competentes, não teriam possibilidades de obter as licenças ambientais exigidas por lei, ou a aceitação social mínima necessária para a sua implementação.

Por outro lado, a continuação deste modelo económico é radicalmente oposto aos compromissos políticos feitos pelo governo Brasileiro na Convenção de Paris (COP21) no último Dezembro de 2015. De acordo com os dados oficiais brasileiros do Observatório do Clima, houve um aumento de emissões de gases de efeitos de estufa de quase 300% entre 1970 e 2013, excluindo os que resultam do infame desmatamento continuado do território Brasileiro. Existem também indicações de que os compromissos políticos firmados na COP21 não seriam possibilitados se não satisfizessem os interesses dos ruralistas (e.g. reforçando o plantio de monoculturas de cana de açúcar) e o setor energético (i.e. favorecendo a construção de grandes hidroelétricas, termoelétricas e usinas nucleares).

É importante notar que a agenda para a mitigação de mudanças climáticas pode ser distorcida para a emergência de novos perigos comuns, como os investimentos futuros no horizonte próximo em energia nuclear. Apenas uma semana antes do impeachment, o Ministro de Minas e Energia anunciou a construção de quatro usinas nucleares até 2030, e de acordo com o seu plano de longo prazo, o número de unidades de produção deverá aumentar 500% até 2050 com a construção de outras oito usinas nucleares. Estranhamente, esta matéria parece não merecer a atenção devida. Num país com condições ideais para ser um líder mundial em energias renováveis, o investimento público em pesquisa tecnológica tem sido direcionado para um modelo energético anacrónico que o mundo precisa desesperadamente evitar.

Mas como diz o ditado, a última posta de bacalhau é sempre a mais cobiçada. Mesmo que os ministros recentemente empossados por Michel Temer não fiquem no poder tanto como os orquestradores do impeachment gostariam, cada dia do governo interino será dedicado a desbloquear barreiras à depredação desenfreada de recursos naturais, em nome do crescimento económico e a favor da acumulação de capital pelas oligarquias dominantes. Num governo de vida curta, as oportunidades de negócio abertas pela atual crise serão aproveitada ao máximo pelas múltiplas estruturas de influência solidamente instaladas no aparelho burocrático. Enquanto se dá seguimento à “liturgia institucional” em respeito às decisões do Senado e do Tribunal de justiça, ministros e deputados trabalham afincadamente na revisão de todas as pastas ministeriais. Se nada mudar radicalmente até aos Jogos Olímpicos, a mídia será povoada de propaganda do governo interino, enquanto este se concentra no aproveitamento intensivo de todas as oportunidades de lucro atuais e futuras, ora pelo relaxamento de normas e mecanismos de controle, ora pela concessão específica de contratos para projetos de exploração massiva, que serão difíceis ou mesmo impossíveis de reverter. Um sinal claro destas prioridades do atual governo interino foi a aprovação, imediatamente após o impeachment, da emenda 65/2012 proposta por Romero Jucá, que praticamente anula a necessidade de licenciamento ambiental para obras consideradas “prioritárias”. Segundo o Instituto Socioambiental brasileiro, existem hoje no Congresso Nacional 34 propostas de alteração dos procedimentos licenciamento de obras de infraestrutura, todas elas com a simplória justificativa de encurtar os seus prazos de execução, não obstante os seus custos sociais e ambientais de longo prazo.

Neste momento, ninguém parece saber onde estes desenvolvimentos recentes irão conduzir o Brasil. Mas os brasileiros sabem, ou deveriam saber, que todo o silêncio é um convite à opressão. E talvez o pior dos silêncios seja aquele que ocorre no ambiente ensurdecedor de uma sociedade polarizada, entrincheirada em seus parti pris e clichés, onde cada episódio grotesco se torna em nova arma de arremesso contra o seu antagonista. O dilema permanece entre a necessidade de mudar o curso da história e a dificuldade de questionar as mundivisões que contribuíram para o atual vazio político e descrédito institucional. Independentemente do lado em que cada um se posiciona neste campo de batalha, nunca foi tão urgente construir coletivamente uma alternativa política ambientalmente responsável, informada por um conjunto de valores menos materialistas, e sustentada por uma rede de relações humanas mais solidária com a natureza da qual todos fazemos parte.

Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta.

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