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O mundo do «Leites»

O mundo do «Leites»

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«LEITES» começou nos anos 70 a garimpar os perdidos e achados das praias de Leça da Palmeira. Ventos e marés deixaram à vista pequenas fortunas, mas também as grandezas e misérias de um País. Atestado e confirmado: o euro não presta. Esqueçam estudos e análises porque esta é uma verdade entranhada por um velho «capitão da areia» e não foge por entre os dedos. A autoridade máxima nestes segredos marítimos e corrosões do tempo é um homem encorpado, de bigode farfalhudo e boné à pescador, com o oceano a bailar no olhar desde menino e caráter cunhado nos avessos da vida, por vezes mar adentro. «O euro é uma moeda fraca», insiste ele, à mesa do Mar Vivo, entre garfadas na petinga com arroz de legumes. «Desgasta-se com o salitre, ganha verdete. O escudo resistia mais, sobretudo as moedas pretas. Quando encontro tostões no areal ainda estão impecáveis».

O mundo de António Rodrigues, «Leites» para os amigos e para esta história, mudou com a chegada da moeda única. O início do século foi o fim de uma época…de ouro. Onde antes as areias finas das praias de Leça da Palmeira, em Matosinhos, escondiam anéis, pulseiras, cordões, outras preciosidades e valores, sobram agora desertos e modernices que deixaram descalços o engenho e a arte de um passado recente. «Começaram a entrar em força os iglôs com o fundo em plástico. Já não cai nada. O pessoal anda commultibancos e cartões de crédito e a juventude está tesa. Depois vieram as máquinas para limpar e alisar a areia. Hoje qualquer praia que se preze tem um trator desses…».

Espaçadamente, mais por hábito do que por garimpo, este homem vivaço e vivido de 60 anos ainda espera pelos assoreamentos da praia ou vai de ferrinho escarafunchar e esgravatar a fenda das rochas ou os reguinhos covadas entre pedras. «As marés vivas já me renderam 27 euros, mas raramente aparece um anel ou uma aliança». Nas suas caminhadas pela restinga, vêm agora à mão robalos com areia nas guelras, congros, tainhas «e às vezes um porta-moedas que alguém deixou para trás a fugir de uma onda…». Miudezas, se comparadas com as vagas de outros tempos…

Memórias gloriosas

Criado na praia, amante de pesca e de amizades de grande calado, «Leites» tem a maresia nos genes. O avô paterno era dono da Casa de Pasto Cortiça: vendia, a «preços módicos», cadeiras para as viagens transatlânticas rumo ao Brasil e a outras paragens da emigração. O avô materno possuía um casebre onde os ingleses guardavam um barco à vela. O pai partiu pedra em Guifões para construir os molhes da doca de Leixões e a mãe, que começou padeira e trabalhou na Câmara de Matosinhos, acabou a gerir as primeiras casas de banho da praia de Fuzelhas. «A minha geografia sentimental está toda aqui».

O menino das brincadeiras do «trinca-cevada» e outras folias com mar em fundo cresceu num naco de terra cosmopolita. Pelo menos até ao 25 de abril. Leça da Palmeira era então uma espécie de Estoril nortenha, o sal de uma aristocracia de praias finas à mão de semear. Primeiro, dominada pela colónia britânica, depois pela burguesia urbana e rural do Porto e arredores, em alguns casos com motorista a condizer. Na época balnear, os leceiros alugavam as casas aos veraneantes e era vulgar ver criadas de touca e avental brancos descer de tabuleiro até à praia para servir o chá das cinco. As crianças preveniam doenças e abriam os apetites com os ares do mar, mas as famílias nem sequer iam a banhos. A marginal era um desfile de amas e barões assinalados, cavalheiros de chapéu de feltro e gravata, senhoras de vestidos elegantes, esplanadas animadas e soirées dançantes.

Outrora pátria de marinheiros, território de partida para a expansão e as descobertas por mares nunca dantes navegados, o País que haveria de desaguar em Leça com a mudança de regime estava já bem longe das epopeias. A democracia traria o povo e com ele um filão por explorar.

«Leites» aprendera a bater o areal com pescadores e estivadores à cata de moedas. Cedo percebeu as manhas dos ventos de sueste e das nortadas, as traições dos ímpos de mar, os mistérios das areias e do restolho das águas. E se o calor dilatava os corpos ao relento, logo se percebia que um mergulho os enregelava, deixando anéis e alianças a bambolear nos dedos. As trocas de roupa nas barracas eram então uma mina.

Pelo meio, calejara-se também na ronha dos mais velhos para espantar os novatos de zonas que se adivinhavam férteis. Sabedorias feitas na areia em tempo de apanha de trocos. «Davam para ir ao Flor da Praia beber um copo ou para o tabaco. Em dias melhores, comiam-se umas sandes de presunto com os amigos. Era chapa ganha, chapa gasta».

E o povo deu à costa…

Os anos 80 trouxeram as excursões do Vale do Sousa. Gentes de Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel, a arraia miúda a quem o 25 de abril permitira a melhoria dos salários e uma breve ascensão na escala social. Chegavam às sete e meia e arrepiavam caminho ao pôr-do-sol. «Vinham todos enfeitados e carregados de ouro, cheios de dinheiro nos bolsos. Traziam os liteiros e os merendeiros, faziam-se fogueiras e sardinhadas na praia, partilhava-se o garrafão». Nas redondezas, jogava-se à malha e naufragava-se de borracheira. No varandim da praia, nos intervalos dos turnos de guarda que fazia na STCP, empresa de transportes coletivos do Porto, «Leites» fazia, a olho, a esquadria do local dos banquetes ou do jogo de voleibol que terminava de homens de rabo para o ar, agachados na areia, à cata de um relógio ou pulseira caídos no auge da contenda.

No areal, os despojos da jornada. Entre os rochedos, as necessidades. Uma lixeira, de pilhas a baterias de automóveis. Também sapatos, toalhas, chinelos, óculos, calções, corta-unhas, isqueiros, pinças, lanternas, lapiseiras, carrinhos em miniatura e até «uma colcha com o escudo da monarquia». Ah!, sim, e o precioso metal, «moedas, brincos, alianças, voltas e medalhas com o rosto de Jesus Cristo». Dava para tudo. «Chegaram a andar 15 gajos na praia», alguns ao final da tarde, enquanto as camionetas aqueciam os motores para o regresso. Para evitar remorsos, ele mantinha um código de honra. «As últimas pessoas iam-se embora quase ao escurecer e era chato estar ali a apanhar alguma coisa na areia enquanto eles entravam para a camioneta». Mordia então pela calada. «Ia de manhã cedo e regressava a casa antes de eles chegarem». Foram anos bons. «Ia tomar café ao Flor da Praia e dizia: “Ó senhor Alfredo, espere aí que eu vou ali à areia e já lhe pago”. Quando voltava já dava para um copo e uma sandes de queijo».

O detetor milagroso

Com os ventos a soprar de feição, «Leites» deu o salto tecnológico: comprou um detetor de metais por correspondência, mas o aparelho não rendeu o desejado. No final dos anos 90, investiu a sério. «Gastei 34 contos e novecentos escudos. Era metade do meu salário, mas abençoada hora em que o comprei. Amortizei o detetor em doze dias». O método, além de ilegal, impunha outras precauções: «Ninguém podia saber. Ia de madrugada para a praia e voltava antes do sol nascer». Com o céu estrelado por companhia e os headphones a rigor, a orquestra de «bzzzz´s» e «oooiiinn´s» assinalava os pequenos tesouros enterrados na areia. Música para os seus ouvidos. «Cheguei a fazer três e quatro contos por dia. Vendi uma volta por 12 contos e trouxe alguns mimos da areia para a mulher. Quando algumas zonas davam 300 ou 400 escudos, mudava de praia». Nos dias mais desesperados, «ia para as dunas, onde namorados tinham passado o dia na marmelada e os casados se esqueciam das alianças enroladas nos isqueirosclipper».

Com o euro, a maré vazou.

Deu à costa um País em permanente ressaca de crises, trajado de fancarias e escudado em remedeios. «Há também uma altura em que a maioria da malta que andava na areia deixou as ilhas de Leça e foi viver para os bairros sociais. Aí acabou». Agora, resta a espuma desses dias.

Por Miguel Carvalho publicado in http://adevidacomedia.wordpress.com/

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