…entrei no ateliê de Júlio Resende. Corria 2007, ele ia fazer 90 anos e eu – desejo antigo – queria muito aquela entrevista. As horas que ali passei jamais esquecerei: pela ternura, pela simplicidade, até pela marotice. Aqui fica o resultado parcial dessas horas consumidas numa conversa lenta, como deveriam ser todas. E de que já tenho uma imensa saudade.

“A vida é melhor desarrumada”

O que move e ilumina os gestos do Mestre? A VISÃO esteve com Júlio Resende, a dias de o pintor completar 90 anos.

Por Miguel Carvalho

Nas telas, de cores espichadas, há esboços de reis magos, do Menino Jesus, experiências inacabadas. “Não estão como eu quero”, diz, desassombrado. Júlio Resende, para muitos o maior pintor português de sempre, 90 anos a completar no próximo dia 23, é um eterno insatisfeito.

Confessa-se ainda “cheio de curiosidade”, fiel à intuição. A razão, explica, “não é rigorosa”. E comete deslealdades.

O seu ateliê, numa casa virada ao Douro, na marginal de Gondomar, é o espaço onde até um raio de sol tem uma importância desmesurada. Gosta que ele entre, livre, afoito, e se espreguice no desarranjo de telas, pincéis, tubos de tinta, papéis, máscaras, bonecos, cadeiras.

Acende o cachimbo.

Fuma desde Fevereiro de 1947, havia um Inverno rigoroso em Paris “e precisava de aquecer as mãos”. O fósforo acende histórias, a alma ilumina-se. Nada como a companhia do historiador e jornalista Germano Silva para se guiarem mutuamente nas entranhas das “estórias” e das figuras do Porto que tanto amam. E vêm a lume os tempos de menino, as musicalidades que, às vezes, habitam aquelas paredes – Bach, Mahler, Chopin e outros – as gravações guardadas do comboio, do pregão, do vozear das gentes do antigo burgo. O Lugar do Desenho é hoje a menina-dos-olhos de Júlio Resende. Espaço de artes, vida, experiências, partilhas, criatividade, sonhos. Um deles é agora tornado realidade: no dia do aniversário do Mestre, o Presidente da República inaugurará, na Alfândega do Porto, a maior exposição retrospectiva alguma vez dedicada a Júlio Resende. Mais de 200 obras.

Só a mão e os olhos se vão cansando, neste contagiante apego à vida, ao sol, “ao fascínio da lua”, às cores. No resto, o mesmo espírito, uma eterna dádiva. “Não entendo as pessoas que dizem que fazem coisas para matar o tempo. A última coisa que quero fazer com o tempo… é matá-lo”.

Terá agora a maior exposição de sempre das suas obras. Qual é a sensação de ver a sua vida “exposta”?

Há coisas que não vejo há muito tempo e nem sei onde estão. Não sei como será o comportamento dessa prole toda junta [risos]. Espero que se portem como irmãozinhos, afinal têm todos a minha marca.

Vai ser como olhar-se ao espelho?

Não sei é como está o espelho! [risos] Se calhar está um bocado partido ou fosco. Assumo tudo, claro! Espero que ainda olhem para o que fiz como a obra de alguém que faz uma busca permanente. Com angústia e instinto. Sou muito instintivo.

Que insatisfações ainda o movem?

Ainda estou cheio de curiosidade. Se me encontrar cá daqui a dois ou três anos, talvez já lhe possa dizer o que procuro agora… A minha arte deve muito à busca de gentes, geografias, sabe? À busca do andar, do dizer e do sentir dos outros. Como agora já não posso sair muito destas quatro paredes, faço evocações e recorro a imensas coisas que deixei penduradas. Tenho aqui muita coisa para repensar…

O envelhecimento é um regresso à infância?

É. E sinto gosto nisso. A vida é extremamente rica, propiciadora. E a idade dá-nos, felizmente, falta de paciência para coisas que não têm importância, no conjunto do tempo.

O que guarda de mais profundo e afectivo, nestes 90 anos?
Para mim, foi sempre muito bom falar com os outros. Questionar, aprender com cada um. E não basta ter experiência de vida. Às vezes,
a experiência ajuda-nos na técnica, mas não vale para o espírito.

Encontrou mais humanidade e sabedoria nas pessoas simples, disse uma
vez…

Sim, tenho vários exemplos disso. No Alentejo, onde estive dois anos, adorei os horizontes sem fim, o firmamento espantoso das noites. Uma
vez encontrei um pastor e falei com ele, não havia mais ninguém no sítio por onde passeava. Falei-lhe do céu e ele falou-me dos astros. O homem não sabia ler nem escrever. Ouvi-o e disse: caramba, este homem não disse nada de tolo! Foi de uma simplicidade e de uma poesia fantástica. Tenho várias histórias destas. E estou sempre a aprender.

Para si, o que são as elites?

As elites são necessárias, mas francamente não se deviam deixar perceber ou deixar que reparassem nelas. Devíamos saber que existem, mas sem se fazerem notadas. Quando se fala de arte, de exposições, não há privilegiados para ver e sentir. As pessoas têm de despir as convenções. E o bom senso não é o senso comum. A sensibilidade, o coração, é que são factor de consciência e responsabilidade. Não é o poder que nos
distingue. É a forma de nos relacionarmos fraternamente e percebermos o outro.

A arte para o umbigo serve para algo?

Não serve para nada. Um homem não faz sentido virado para si próprio. Houve alturas em que falava muito da importância da sensibilidade e pressentia que as pessoas, pela frente, aceitavam. Mas lá por dentro pensavam que eu era tolinho. Dá vontade é de ficar calado… Hoje fala-se muito da importância da tecnologia, parece que resolve tudo. Não sou contra a evolução, nem valeria a pena, nem ela é obstáculo à criatividade. Mas deixámos, por exemplo, de olhar para a mão como factor de trabalho. Hoje, a mão já quase só serve para tocar nuns botõezinhos. Está ali o telemóvel, mas nem faço uso. As mãos, para mim, são outra coisa, servem para outra coisa. Pelo menos, enquanto puder. Em cada manhã olho para a minha mão direita e pergunto se ela me deixa trabalhar…

E deixa?

Vai deixando. Quando falo da importância do coração e da sensibilidade no que se realiza, faz pena verificar que os ocidentais caíram um pouco nisso de achar vergonha nos sentimentos, na sensibilidade. Até têm vergonha de chorar. No Oriente, um homem chora quando tem de chorar.

Chora muitas vezes?

Choro muito por dentro, sou assim. Pego no jornal todos os dias. Agora só leio as gordas, felizmente! Vejo noticiários e há coisas que nem comento, com medo de que fiquem piores. Tenho um poder negativo, sabe? Uma vez, em Coimbra, olhei para uma torre e disse: “Parece impossível como isto não cai, está torta!” Nessa noite, a torre caiu. E, uma vez, nas Belas-Artes do Porto, aconteceu-me o mesmo com uma chaminé [risos]. Tenho assistido a coisas degradantes e não sei como é que o Homem pode dar um rumo a isto… Mas teimo em acreditar no Homem. É uma grande teimosia minha.

Com a sua idade, tem uma ampla memória e um olhar privilegiado sobre o País e o mundo, suas tragédias e realizações. Como viu a ascensão dos fascismos, por exemplo?

Foram tempos muito pouco louváveis…

Salazar foi eleito o maior português de sempre, num programa de televisão…

Vai falar-me de estatísticas?

Estatísticas?!

Cada um tem cabecinha para pensar. Mas, se calhar, há alguns, na estatística, com distúrbios. Para mim, um político tem de ser uma pessoa altamente previdente. Não é para pensar o dia de amanhã, mas sim o dia de depois de amanhã. Se aplicarmos isto a Salazar, verificamos que não o fez.

Ainda estamos marcados por esse tempo?

Modificar um povo é obra de todos. Ou assumimos uma consciência colectiva ou não vale a pena. Portugal precisa de um projecto em que os portugueses se revejam plenamente. Em consciência e com responsabilidade. A própria arte tem obrigações. Não chega ser um testemunho do que acontece. Nem deve ser uma demonstração da autoflagelação do Homem. Para isso, é melhor não fazer nada. É preciso dignificar o Homem.

Disse, uma vez, que enquanto artista não podia ser indiferente aos dilemas e inquietudes da Humanidade. Quais sãos os dilemas e inquietudes de hoje? Estamos cada vez mais afastados uns dos outros. Houve um tempo em que, mal ou bem, as pessoas comungavam de um projecto.

Hoje ninguém tem tempo, não estão para isso. O bem comum motiva cada vez menos pessoas. Falta harmonia, fraternidade, cooperação.

Vê Portugal a preto e branco ou a cores?

Se não fosse o preto e branco não havia cores [risos]. Não somos um grande país, mas temos virtudes. O problema é que nem sempre estamos conscientes da nossa realidade. Não somos muito convictos e estamos sempre a minimizar-nos. A Espanha é mais pragmática, tem mais consciência do que vale. Há um pintor espanhol, Velásquez, que exemplifica bem a diferença entre Portugal e Espanha…

Porquê?

Velásquez tinha pai português. O Goya, mais espanhol, tem uma pintura de força, dura. Pinta o que se vê. Ora, nós olhamos muito mais para o mar. E depois há coisas que deixamos de ver, ficam umas névoas. As névoas são mais poéticas, mas também reflectem mais hesitação. É um bem e um mal. Na hesitação perdem-se muitas oportunidades. E o Velásquez é mais névoa.

Saramago disse, recentemente, que o melhor era Espanha e Portugal juntarem-se…

Gosto muito dos espanhóis. E das espanholas, também! [risos]. Adoro a música, a cultura, etc. Mas também gosto muito dos portugueses.
Não podemos querer juntar as virtudes todas.

Sente que a sua arte, o seu talento, a sua experiência de vida e sabedoria são devidamente aproveitados pelo País, pelos poderes públicos?

Sinto dificuldade em fazer chegar o que digo e penso às pessoas mais responsáveis. Não sinto que isso seja valorizado. Ninguém sabe o que estou aqui a fazer no Lugar do Desenho, por exemplo. Estamos aqui vai para dez anos…

Felizmente, tenho muitos jovens à minha volta, vêm cá escolas.

Como são esses jovens?

Não dou sermões nem lições. Falo com eles. Noto que há cabeças muito aproveitáveis. Sou um optimista. Temos de apoiar estas gerações. É meu dever não me calar, falar, alertar. Quem tem algo para dizer, não se deve calar. Por exemplo: se sentir que o meu Porto está a ficar estragado – e está muito – não me calo. Na Capital Europeia da Cultura, em 2001, não se fez o indispensável: mostrar aos portuenses que a cidade tinha sido distinguida por algo importante, envolvendo as pessoas. Todas.

A política é o quê, para si?

Não me dá grandes prazeres.

Há coisas que me magoaram. A minha política é trabalhar, intervir com a minha arte, esperando que isso seja uma chamada de atenção, ou procurar amenizar os tempos que vivemos. Ver os noticiários cansa, sabe? Só mostram coisas que nos martirizam. E isso dá mau resultado: acabamos por ficar anestesiados. Só ligo a televisão duas vezes por dia, para ver noticiários. Mesmo ao pequeno-almoço… valha-nos Deus! Aparecem sempre médicos, doenças. As pessoas, mesmo que não tenham nada, começam a pensar: “Será que eu tenho isto?!” Às vezes, saio, volto e pergunto: “Já passou o médico?”

Nas viagens que fez, o que mais o tocou?

Fiz algumas, sempre curtas. Quis sempre ver as pessoas simples, as ditas menos evoluídas, mais ligadas às terras. E isto não se faz sendo turista. Faz-se observando, conversando.

A vida é melhor planeada ou desarrumada?

Desarrumada, desarrumada! Não acredito que as coisas muito planeadas possam servir um mundo tão indisciplinado. Mas eu já digo coisas de outro século.

Tal como na vida, sempre o fascinou tocar, experimentar várias artes, não é?

Fiz ilustração, escultura, cerâmica, etc. Mas as coisas têm de ser vividas profundamente, mexer nas costuras, nas texturas. Foram experiências ricas.

Há alguma coisa que sinta inacabada?

Gostava de explorar o que recebo das outras áreas criativas. Da música, por exemplo. Traduzir os ritmos, as melodias para os meus gestos. Tentei fazer agora uma experiência com Stravinsky, mas sinto que não atingi tudo o que queria. É uma coisa de que gosto muito: tentar relacionar todas as artes, todos os meios, deixá-los contaminarem-se, influenciarem-se mutuamente. Foi uma tolice separar a Arquitectura da Pintura e Escultura. O ensino devia ser horizontal. Faz sentido falar da História sem falar de Cultura?

Como gostaria de ser lembrado?

Ficam as obras. Essas dirão que existi. Se calhar, vão dizer também que havia um indivíduo, pintor, que dizia umas coisas assim-assim… e talvez tivesse razão [risos]!

Acredita em Deus?

Enquanto não me explicarem tudo cientificamente, tenho de acreditar que existe um Ser, não sei sob que forma. Mas acho que me vou embora deste mundo sem me conseguirem explicar [risos].

Publicado originalmente na revista Visão em outubro 2007 e republicado em 21 de Setembro de 2011 in http://adevidacomedia.wordpress.com/

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