A PROPÓSITO do lançamento de Vida no Campo, o novo livro do geógrafo Álvaro Domingues, aqui fica o texto publicado na última edição da Visão sobre este homem que adora calcorrear o País em busca das nossas identidades, kitadas ou não.

Álvaro no País «kitado»

Está sentado? Pois bem, cá vai: se ainda «vive» no Portugal da aldeia típica, do bucolismo e do romântico, está a precisar de fazer o luto. Como é, afinal, a Vida no Campo?

Ai, a natureza a perder de vista. A paisagem pura, os poéticos vinhedos a Norte, as aldeias de xisto ao Centro, as casinhas brancas ao Sul. Ai, as tradições e os hábitos ancestrais do nobre povo. Ai, o campino e o saiote azul. Ai, o pastor no monte, o camponês honesto, pobre e feliz na sua simplicidade rústica, patriota e temente a Deus…

Se chegou até aqui e ainda acredita que este País existe, está na hora de descer à terra. E rever os códigos para decifrar a paisagem. «Algumas narrativas sobre a ruralidade e o interior são puro efeito de branding para vender um resort ou um produto. O distanciamento entre realidade e ficção é enorme. Mas as pessoas continuam a pensar que a paisagem é uma coisa de pendurar nas paredes ou para ter no ecrã do computador».
O geógrafo Álvaro Domingues (Melgaço, 1959), já tinha abanado a nossa sostrice contemplativa e a mitificação do rural e do urbano quando calcorreou e documentou as metamorfoses d´A Rua da Estrada, País encravado entre floresta, rotundas, chafarizes, cães de loiça e néon de estrada nacional. Vida no Campo (Dafne Editora) retoma agora o espírito da coisa, por outros caminhos: «São pistas para ler o território sem incompreensões, azedumes ou amnésias. A paisagem é transgénica e isso, para mim, não é negativo. Um coelho fluorescente não é um pirilampo, mas também não deixou de ser um coelho por ser fluorescente. É um produto kitado. O País é assim, faz parte da nossa identidade».

Olhai os líricos do campo…

Álvaro Domingues nem precisa meter-se no carro para descobrir esse Portugal «complexo, feito de muitas culturas e com um DNA riquíssimo». Basta levantar-se da sua secretária na Faculdade de Arquitetura do Porto, contornar calmamente os edifícios desenhados por Siza Vieira, atravessar a rua e descer uma tortuosa ladeira. Depois, perder-se, ali mesmo ao lado, numa varanda verde virada ao rio, por entre carreiros e hortas urbanas onde convivem banheiras entupidas de terra e dvd´s oscarizados para espantar os pássaros, não vá dar-lhes a bicada para Hitchcock. «A agricultura e a vida camponesa já não são as bases económicas e culturais do País. A agricultura é de afetos e sobrevivências e o rural é um estado de alma, não existe. Estamos a criar cortinas de fumo para iludir a realidade», explica o investigador.

Normal é, pois, ver um espigueiro com 500 anos ao lado de um painel fotovoltaico. Um arado voador no jardim. Um dálmata de pose cerâmica no telhado. Um pomar pneumático. Uma torre no quintal. Próteses tecnológicas além-montes. Cabras no asfalto. Vacas e introspeções bovinas de auto-estrada a dois passos de uma qualquer twilight-zone do mundo rural. Simulações rústicas e sintonias cromáticas. E o que mais houver da tralha da cultura-mundo, feita de tempos empastados, quebrando o fio da História e a desafiar perguntas: de que tempo é este lugar e de que lugar é este tempo? «Não é atraso nem progresso, nem feio nem bonito, nem bom nem mau. A nossa página não é branca, pura e imaculada. De repente, tens uma paisagem exposta a coisas da China, à cultura FOX e AXN e com algo que só existe na tua terra. Acho isto um bem maior».
Ele, minhoto, não teve uma vida no campo «idílica».

Até à adolescência, o Alvarinho em construção apanhou bagos nas vindimas, tirou as ervas do talhão das cenouras, deu de comer às galinhas. Também ia buscar água, levar e trazer as vacas, carregar lenha ou cegar erva para o gado, atravessando manhãs de geada e dias abertos até de madrugada. Aprendeu a passagem das estações, o tempo das ervilhas, das favas e das tangerinas. «E uma couve não é um repolho», adverte.
Deve os estudos ao pai, homem dos sete instrumentos – agricultor, contrabandista, pescador, merceeiro, comerciante – dos quais retirava proveitos que lhe permitiram ter o filho a estudar em Braga. «Há uma autobiografia em tudo o que fazemos. No meu caso, são 15 anos de vida no “Portugal profundo”, com muita vida no campo e sem saudades dela».

Nós, exóticos

Mas a narrativa salazarenta, «dos campos elísios» perdura, acentuada pela perda das «tradições e estabilidades longas». Uma espécie de «nostalgia do paraíso perdido ou, numa explicação freudiana, de mau luto pela perda. Embora o rural nunca tenha sido o paraíso, precisamos dele para viver. É uma espécie de Éden onde as pessoas apaziguam contrariedades, Adão e Eva antes da serpente», reconhece Álvaro Domingues.
O problema de fazer o luto a este mundo é que o morto está sempre presente. Por isso, vivemos numa esquizofrenia bipolar, «como se a geografia fosse feita de aldeias típicas e centros históricos» que percorremos como alfinetes no mapa, refere o geógrafo, para quem nem sequer se devia pronunciar a palavra Interior. «É um conceito esponja, absorve todos os temas». Vejamos: o envelhecimento é Interior? É. O drama das escolas fechadas é Interior? É. As SCUT´s são Interior? São. «Mas o conceito nem sequer é geográfico. Na Península Ibérica, não há nada mais Interior do que Madrid e não consta que esteja desertificada».

Aceitemo-nos, pois. Kitados, transgénicos e exóticos, com casa de emigrante e alminhas TIR, «sem olhares científicos a poluir a análise» ou miragens bucólicas «de quem pensa que o rural e a natureza são lugares para passar férias». De resto, o cosmopolitismo é capaz de ser algo bem mais acessível do que se pensa. «Não é só para pessoas de muito dinheiro e cultura. Basta estar predisposto a enraizar, a perceber o que está na frente dos olhos, ser curioso, não permanecer na retranca». Viajantes no próprio País. E nos outros. «Há gente com uma cultura impressionante, mas tão narcísica, que só quer comida a horas e programas turísticos em que aparece a expressão “manhã livre”». Meta-se, pois, na rua da estrada e aprecie a vida no campo. O resto é paisagem.

Como fazer um livro

Subscrição pública via Internet. Foi esta a solução para Vida no Campo ver a luz do dia. Eram precisas quinhentas almas, pelo menos, para viabilizar a edição de um livro que estava prontíssimo. Elas foram encontradas entre muitos leitores e amigos de Álvaro Domingues, mas a esses juntaram-se especialistas de várias áreas e curiosos dispostos a aplicar os euros neste ensaio sobre a variedade indígena. «Não há um orçamento que pague isto», assume Álvaro Domingues. «Isto é a minha outra vida. Uso as viagens que faço para fotografar o País e, na maior parte dos casos, isso basta-me». Se calha atacar a doença profissional de geógrafo, diz: «Ó diabo que ainda não foste à Beira Baixa». E vai. Neste sábado, 17, na Casa do Conto, no Porto, Vida no Campo terá «fabulosas apresentações» de Valter Hugo Mãe, Nuno Portas, Duarte Belo, Graça Castanheira, João Gesta, entre outros. A seguir virá o fim da saga com o volume Volta a Portugal, em gestação, subjacente à filosofia «posto isto, vamos apanhar as variações regionais».

Foto de Lucília Monteiro por Miguel Carvalho in http://adevidacomedia.wordpress.com/

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