Carlos Poças Falcão (Guimarães, 1951) reuniu a sua obra poética num volume que decidiu intitular Arte Nenhuma, e que teve recentemente, em 2020, uma segunda edição acrescentada. A serena provocação deste título, a humildade e o sentido especulativo que lhe estão implícitos, são uma marca de água de um poeta assumidamente discreto, mas que tem merecido uma rara paixão dos seus leitores, sejam eles mais ou menos especializados. O discurso poético, muito à margem das práticas dominantes, é nele um “altíssimo conhecimento” que põe em diálogo escalas múltiplas, tendencialmente infinitas, de espaço e tempo, cruzando pontos de vista e saberes, contingência e transcendência. Conversámos no seu apartamento em Guimarães, numa tarde que insistia em nos deixar sinais, pistas de leitura. Foi preciso rodear algum caos de uma cidade antiga e matricial (a confusão das obras, uma artificiosa feira medieval) para aceder ao sossego da conversa, que se tornaria em muitos momentos inesperada e singular. Um ou outro quadro apenas pressentido na penumbra, mãos despojadas que desenhavam na mesa limpa paradoxais formas geométricas. Pela janela, explodindo de verde, uma encosta de serra, a Penha, e em contraponto o contínuo dos trânsitos humanos, vozes, acelerações de motores. Um poema seu começa assim: “Há um lugar confuso: desvia-te três passos / e a serenidade respira calmamente. // Não é fácil entender só com o entendimento: / a decisão dos pássaros que voam para poente / a decisão dos pássaros que voam para nascente. // Sais de ti: o que é que entra?”

Talvez pudéssemos começar pelo mais circunstancial. Como descreveria o seu local de trabalho? É uma ilha, uma cela, um santuário?

Parece-me que nenhum deles corresponde exactamente. Durante alguns anos, tive um local próprio para escrever, um pequeno gabinete, fora de casa. Dava-lhe o nome de laboratório, porque era de “labor” e “oratório”, as duas coisas…

Há no seu “habitat” de trabalho objectos indispensáveis à sua volta ou é absolutamente supérfluo o que o rodeia no momento da escrita? Deve haver luz, silêncio, música, ruído?

É muito importante eliminar o ruído, dentro do possível. E também não costumo escrever com música. Quanto ao resto, na verdade, não tenho qualquer tipo de fixação “ritual”. Até porque há uma coisa que me acontece: escrevo com bastante facilidade num café, desde que não seja barulhento, o que é cada vez mais difícil de encontrar. Agora, quase já não existe aquele aconchegante rumor de conversas à nossa volta. Com a TV ligada, os telemóveis e a praga da dita música de fundo, que não é de fundo, nem é música, vejo-me obrigado a andar sempre munido de tampões. Por sorte, tenho junto de casa um café relativamente sossegado. Vou tomar o café, demoro-me por lá cerca de uma hora com o “tablet”, mas o resto da escrita é em casa, sem dúvida.

Como descreveria a sua biblioteca? Está mais próxima de uma ideia de “cosmos” ou de “caos”? Como a organiza ou desorganiza?

Está mais próxima da ideia de cosmos. Geralmente, está organizada por grandes temas. É claro que, à medida que se vão adquirindo mais livros (o que é imparável e o espaço não aumenta), essa organização começa a ficar problemática, porque depois os novos livros de determinado tema já não têm lugar na estante que seria apropriada. Começam a gerar-se segundas organizações, terceiras organizações, que começam a ser, na verdade, uma desorganização.

Considera-se um bibliófilo?

Sim, num sentido imediato. Realmente, a minha vida sempre tem sido com uma forte ligação, designadamente afectiva, aos livros. Mas não no sentido de um apreciador do livro como objecto em si mesmo, numa relação de coleccionador capaz, sei lá bem, de esquadrinhar todos os alfarrabistas em busca de um livro raro ou uma primeira edição. Não, isso não…

Tem uma rotina de escrita, rituais?

Nem por isso… Digamos que é uma coisa muito simples. Realmente, o silêncio é importante. Há determinadas horas do dia que, quase inevitavelmente, são as mais apropriadas, porque são aquelas em que também outros afazeres da vida prática estão postos de lado. Assim, posso dizer que, ultimamente, nos últimos anos, os meus momentos fortes de escrita são sobretudo ao fim da manhã e durante a tarde. Houve épocas em que era à noite, ou mesmo alta noite… Mas agora a idade não perdoa e se me ponho à espera dessas horas adormeço…

Mantém boas relações com as velhas musas inspiradoras? Conta com elas?

Acho que a minha musa inspiradora, para o bem e para o mal, não tem variado. E, como dizia, salvo erro, o Mário Cesariny, às vezes é-me infiel (ele dizia isto de outra maneira, mais precisa, mais plebeia…). Também acho que essa musa, que não conheço pessoalmente mas que sinto presente, é ciumenta. É mesmo muito ciumenta, no sentido de que, se eu tentar dividir os meus momentos de escrita, leitura ou contemplação com outras coisas, põe-se logo em alerta, amua e, se piso o risco vermelho, ela realmente desaparece e faz-me sofrer…

Mallarmé afirmou um dia a Degas que poemas não se fazem com ideias, mas palavras; de qualquer forma, o que decide o nascimento de um poema, o que é que o faz eclodir? É um processo surdo e lento, há momentos explosivos? O que aconteceu de tão particular entre Janeiro e Julho de 1984, como data o seu primeiro livro, na sua primeira edição, embora só o tenha publicado uns anos depois? Foi um momento especial?

Decerto que foi, embora não saiba dizer porquê. Quanto à célebre asserção de Mallarmé, é daquelas “grandes frases” feitas para se incrustarem no espírito do tempo. Porque, efectivamente, um poema, como qualquer obra de arte, é demasiado complexo para se poder realmente decidir apenas por uma parte do que é o acto criativo. O acto criativo é tão complexo que considerar apenas a música ou a forma da palavra, sem haver também ideias, pensamento, conteúdos, parece-me redundar num flatus vocis. Por outro lado, também é verdade que a poesia não é propriamente a expressão de ideias, ou razões, ou sentimentos, senão escrevia-se prosa, sentimental ou filosófica, com muito maior rigor e proveito. Portanto, é algo de muito complexo, que implica essas e muitas outras dimensões.

Nesse ano de 1984, na verdade, aconteceu algo que a mim próprio me intriga, porque, talvez precisamente em Janeiro, dei conta de que escrevi um poema (precisamente o primeiro poema do livro O Número Perfeito, cronologicamente e na ordem da sua organização interna) em que cheguei ao fim da sua escrita e tive a percepção clara (momento que continua bem gravado na minha memória) de que tinha encontrado ali, digamos assim, uma voz própria, sem querer fazer disto qualquer pompa. Quer dizer, tinha encontrado um ritmo, uma sonoridade, um modo de dizer pessoal, de tal maneira que foi uma corrente que se manteve durante meses e que deu origem a esse meu primeiro livro. Todo ele com poemas de dez versos, com um determinado ritmo, uma determinada sonoridade, uma determinada dicção, nas sílabas, nos versos, na gramática, na visão… Algo aconteceu, porventura por ter ido (e nessa altura eu era ainda relativamente novo) dar aulas para Fafe, que é perto aqui de Guimarães mas que, de qualquer maneira, me obrigava a um período de separação deste meu meio natural de viver. Não se justificava eu vir a Guimarães e voltar a ir para as aulas, e assim criavam-se “furos” horários que me destinavam a momentos de grande pasmo, um almejado ócio que procurei preencher com a consideração da poesia. Mas isso será certamente um pormenor, entre o estímulo de muitas leituras de que já nem me lembro, vivências múltiplas e (o mais importante) qualquer coisa mais, não sei o quê.

Precisamente: na eclosão da sua poesia, qual o papel das leituras e das outras artes? Da música, das artes plásticas, da dança?

Julgo que a leitura é realmente importantíssima, embora seja difícil estabelecermos um nexo crítico entre o produto da criação poética e as leituras que nele estão implicadas. É muito difícil, porque tudo isto é na verdade um magma. Mas penso que a leitura é de uma importância fundamental. Creio que isso é generalizável a todos os poetas e artífices de outras artes. Acontece-me com frequência reabrir um livro já lido há muito tempo, e lá dentro encontrar papelinhos esquecidos, por exemplo, um qualquer recibo, um guardanapo de café…E fico sempre surpreendido (e às vezes até um pouco comovido) ao ver que no recibo ou no guardanapo rabisquei o vestígio de um poema, às vezes um esboço muito grosseiro, mas de qualquer maneira alguma coisa, um rastro, um indício, algo que teve a ver com aquele livro, certamente, um verso que na leitura se acendeu.

Nunca escreve notas ao lado dos poemas?

Não. Já nos livros que ando a ler gosto de sublinhar ou sinalizar e de escrever uma ou outra nota. Sobretudo nas páginas em branco que sobram no fim do volume, por vezes meras remissões para as páginas que me interessam.

A questão da relação com as outras artes… Não há um poema que fale em particular de um quadro, de um filme, isso não lhe acontece muito… Há talvez outras relações mais subtis…

Subtis sim, sem referência explícita. Há poetas que cultivam essa alusão muito clara e directa, até nos próprios títulos, a uma determinada pintura, ou filme, ou fotografia, por vezes quase se aproximando de uma escrita ecfrástica. No meu caso não. Mas há, por exemplo, um poema no Sombra Silêncio que é motivado por uma fotografia, um em O Número Perfeito que se aproveita de um sarcófago etrusco, outro de um vaso grego onde se representa o que parecem ser uns ceifeiros a cantar… Dificilmente o leitor poderá fazer a ligação, são coisas que ficam cá com o autor, mas que foram, digamos assim, impulsionadoras da escrita. Não têm qualquer importância para a recepção do poema, penso eu.

O seu percurso biográfico passa por esta cidade de Guimarães, pelo Minho, com certeza também por outras geografias e viagens e por vivências que atravessam a advocacia, o ensino. Acha que todas estas circunstâncias de algum modo condicionaram a sua poesia?

No caso da advocacia, creio que me condicionou pela negativa, isto é, foi um obstáculo que me obrigou a encontrar estratégias para a sobrevivência poética. No meu caso particular, porque há notáveis poetas que foram grandes advogados ou juristas. É o que acontece com o já falecido bastonário António Osório. No caso dele, realmente parece não ter havido grande dificuldade de conciliação. Mas comigo não foi assim… A prática da advocacia criava-me grandes obstáculos: demasiado absorvente, demasiado preocupante, demasiado prosa. Não estava talhado para aquela linguagem tão formalizada e aquele rolo compressor de vida bruta. Quanto à minha carreira como docente, estabeleci desde logo um cordão sanitário, que nunca quebrei: o poeta não ia à escola, o professor não vinha à poesia. Em relação a outros aspectos, há talvez, muito indirectamente, algum efeito de viagens que fiz… Não sou um viajante. Fiz algumas viagens, até longas, mas tudo isso, recordando-as, me parece um sonho, mais ou menos perturbador. O que me fica delas, com frequência, é uma sensação de sonho, ou de miragem.

Se bem que nos Picos da Europa…

É verdade, quanto aos Picos da Europa há uma série de poemas curtos, à maneira de “haiku”, que estão explicitamente relacionados com as montanhas, porque foram lá escritos. Surgia-me de repente um motivo, tomava apontamento da ideia na memória – e depois era só trabalhar em casa um bocadinho.

O escrever à mão, o manuscrito, são para si importantes? E as novas tecnologias, o computador, em que é que ajudam ao processo poético?

Durante muitos, muitos anos a minha escrita foi unicamente à mão. Com rasuras, muitas. De há uns anos para cá é o computador só. De tal maneira que vejo nisso uma grande vantagem, porque emendas e reformulações são facílimas de fazer e pode-se até ter imediatamente uma imagem gráfica do texto impresso, o que para mim é importante. Este é o aspecto positivo, o da facilidade, digamos assim. O aspecto negativo é o de que os poemas, de alguma maneira, ficam sem história registada, sem “biografia”. Os curiosos da caligrafia, ou das minudências dos manuscritos que se preparem para o desemprego…

O trabalho de revisão é então importante… Quando é que finalmente larga um poema, quando é que sente que ele já pode ir à sua vida?

Não é fácil, realmente, não é fácil…Poucos são os poemas que escrevi e que tive a felicidade de considerar acabados quase no próprio acto de os criar, muito poucos. A maior parte é fruto de um impulso inicial, sem dúvida, mas depois também de um grande trabalho de oficina. Outros pensarão de outra maneira, mas, no meu pensar, é no trabalho de oficina que está o segredo do poeta, porque basta um bocadinho de oficina a mais e a “espontaneidade” ou “naturalidade” do poema desaparece. É isto que se chama, porventura, arte, no sentido próximo (e originário) de técnica. É preciso ter uma certa intuição, um certo sentido de artesão experimentado. A mão certeira do artesão, ou do cozinheiro, ou do alfaiate. Creio que é na “oficina” que o espírito vigia, que o espírito comparece. Uma pessoa também vai aprendendo com a experiência. Truques, segredos de fabrico…E sabe que, se apurar de mais, o produto perde o frescor, fica massudo, sem sabor (sem “rasa”, diriam os hindus). Em contrapartida, se formos a respeitar demasiado a espontaneidade com que o poema irrompe, corremos o risco, quase sempre concretizado, de avalizarmos o disforme, o inarticulado, o confuso, o grosseiro, o desleixado. É no trabalho de oficina, acho eu, que está realmente o segredo, a “musa” do poeta. Porque esta é a realidade experienciada: a “oficina”, o “laboratório”, é verdadeiramente o lugar de trabalho da inspiração.

Ao reunir os livros numa publicação global não sentiu a tentação de mexer muito, de transferir textos, de retirar poemas?

Contrariamente ao que sei de muitos poetas e outros escritores, que fazem isso de uma maneira quase obsessiva, eu realmente não… Parti do princípio de que esse trabalho foi feito na própria altura e que se lhe for mexer é para estragar. O que não quer dizer que, num caso ou noutro, não o tenha feito. Há mesmo um caso em que eliminei uma secção inteira de um livro, a secção III de O Invisível Simples, que não consta da reunião de livros a que procedi em Arte Nenhuma. Não me agradava realmente. E não se prestava a que lhe mexesse. Mas mantive o lugar dela, uma página em branco apenas com a referência explícita à sua existência – acho que por respeito ao indivíduo que outrora a escreveu…

Já disse pelo menos uma ou duas vezes, algures, que a forma o auxiliava a escrever o poema, em vez de o constranger, que, em vez de ser um colete-de-forças, era libertadora. Como se explica isso?

É algo que, na verdade, me obriga a uma grande contenção, a uma capacidade de síntese expressiva, a uma (digamos assim) intensidade no rigor. Evita-me a diluição em possibilidades vagas e em derrames verbais. Aquilo que há a dizer tem de ficar da maneira o mais clara possível dentro dos critérios definidos. E, então, toda essa exigência formal, paradoxalmente, em vez de ser constrangedora, é uma segurança em grande medida libertadora. A poesia aspira à forma…

Coloca-se também a questão do tempo: tem essa forma e dedica-se especificamente a um certo poema ou pode começar entretanto outro?

Geralmente, enquanto não acabar um poema, não trabalho outro. É um de cada vez. É raro jogar em tabuleiros múltiplos, como no xadrez.

No tempo de escrita de um poema temos também o dia-a-dia. Como se conjuga essa escrita com a chamada vida corrente, ver cinema, sair à rua, tudo o mais? Vive o poema, trabalha-o dentro de si no dia-a-dia?

Sim. Os meandros criativos são processos que temos dificuldade em verbalizar e em explicar, porque são os nossos modos íntimos e intransmissíveis de viver tudo isto. A verdade é que regresso ao poema constantemente, em pensamento, nos momentos mais inesperados: posso estar a preparar uma refeição (e eu nem desgosto de cozinhar…), ou a preparar-me, nos asseios matinais, ou na rua – e o poema vai sendo visitado no meu espírito. Porque caiu num impasse, ou há ali alguma coisa de que não gosto, que tenho de substituir ou rasurar por completo, ou uma ideia mal captada, ou um ritmo que tropeça: tudo vai trabalhando dentro da cabeça. Também nisto não sou em nada diferente de qualquer outro indivíduo que se proponha criar alguma coisa. Por outro lado, quando me sento para retomar o lugar da escrita, depois de aliviadas as obrigações da vida prática, tenho o condão de reentrar outra vez na escrita do poema e retomar a oficina. E entrar no poema é entrar na sua frequência, digamos assim, retomar a sintonia com que ele me encontrou na sua energia inicial. Tenho, reconheço-o, alguma facilidade em me ressintonizar na frequência do poema. Confesso, todavia, que essa facilidade é ao mesmo tempo muito precária: basta uma ligeira brisa contrária, uma leve contrariedade (por exemplo, um ruído, uma preocupação doméstica…) para comprometerem irremediavelmente a audição interna do poema.

Nesse processo procura um lugar especial, ouve certa música, lê algo para o auxiliar na resolução do impasse?

Não, mantenho o ritmo habitual. Acontece até uma coisa curiosa. Quando recaio nesse engano de me querer “inspirar” e vou dar um passeio na montanha (que na verdade pode ser esta mesmo aqui em frente à minha casa, a Penha), ou vou até à beira-mar, por exemplo, aí é que não há poema absolutamente nenhum, inspiração nenhuma, porque fico totalmente aturdido pelas presenças fortes do mar ou da montanha. O efeito, o espírito, a inspiração poderão ocorrer muito mais tarde, sei lá eu bem quando ou como…Comparecerão na “oficina”, no acto da escrita, na concentração habitual. Pois é aí o lugar da inspiração. Em casa, ou na mesa habitual do café.

Costumava também frequentar cafés no Porto?

Sim, no tempo em que havia a livraria Leitura, houve uma época em que era quase obrigatório, não digo semanalmente, mas umas duas vezes por mês, ir ao Porto para pura e simplesmente passar os olhos pelos livros, as novidades nos escaparates. Vinha de lá sempre com uma mão cheia de livros. Visitava a Leitura e depois era aquele gosto de ir para um café (podia ser o Ceuta ou o Aviz, próximos) e de ali ficar a percorrer, um pouco ao acaso, umas primeiras páginas. Agora penso que tudo isso está um pouco mais difícil: os cafés foram desaparecendo, as livrarias são muito diferentes…

Voltando ao café: a Antologia Breve de Eugénio de Andrade foi lida numa dessas visitas ao Porto?

É um episódio de que já falei noutras ocasiões. Na verdade, a Antologia Breve trouxe-me de volta à leitura e à escrita de poesia, depois de alguns anos de radicalização política, ainda antes e a prolongar-se até depois do 25 de Abril. A militância e a “pureza” revolucionária levaram-me à estupidez de ver na poesia uma fraqueza, uma inaceitável concessão pequeno-burguesa… Antes disso, lia e escrevia poesia com alguma paixão, chegando mesmo a pertencer a um grupo que recorria as associações e casas do povo do concelho a fazer recitais de poesia. Depois não. Era uma fraqueza, uma linha negra, pequeno-burguesa… Ora, passada esta doença, veio-me ter às mãos essa Antologia Breve comprada na livraria Leitura e de imediato lida e devorada num desses cafés próximos, o Ceuta ou o Aviz, já não sei. Sei que foi uma “martelada”, um murro, algo que me fez despertar com violência. Outra vez o feitiço da palavra, o encantamento do ritmo, a verdade dessas pequenas colunas de versos, a poesia! Devo, sem dúvida, à Antologia Breve, do Eugénio de Andrade, o meu reencontro com a palavra poética. Curei-me. E não tive recaídas…

Tem o hábito de dar a ler os poemas a alguém antes de os publicar ou em esboço? Há algum leitor privilegiado que seja cúmplice na construção desse processo ou é uma tarefa absolutamente solitária?

É absolutamente solitária. Enquanto um poema não estiver acabado, não o dou a ler a ninguém. Até a minha esposa acabou por compreender e aceitar isso… São raríssimos os casos em que aos meus amigos mais próximos, designadamente à minha esposa, dou a ler o que ando a escrever. É uma mania como outra qualquer…

Há, contudo, um leitor implícito nos seus poemas, um leitor ideal que eles reclamem?

Digamos assim: se formos a indagar muito, esse leitor ideal sou eu… No entanto, para esclarecer possíveis equívocos, digo desde já que estou muito longe de escrever para a gaveta, de ser o poeta que escreve só para si. Não, eu escrevo para ser lido por outros… Por temperamento e brio, não gosto de mostrar a oficina, as peças ainda todas desajustadas, a obra em grosso. Ou experiências, experimentações, experimentalismos… Tenho um certo pudor nisso. Mas não me passaria nunca pela cabeça escrever um livro e, deliberadamente, não o publicar. Agora quanto ao “leitor ideal”: tenho bem presente diante de mim a multiplicidade infinda de leituras e aceito-a. Apenas peço ao possível leitor de um meu poema que se demore um pouco, que tenha um pouco de paciência, que acredite um pouco no que lhe proponho para ler.

Coloca-se aqui a questão do reconhecimento. Escreve, quer tornar a obra pública, mas depois temos a receptividade, o efeito no público, os comentários, as críticas… Isso afecta-o ou não?

Afecta-me pouco, quase nada. Escrevo e creio que faz parte do ciclo do poema o ser publicado. Simplesmente, depois o que vão dizer ou vão pensar, acho que isso não me diz respeito. O leitor é absolutamente livre de fazer as interpretações que quiser, de gostar, de não gostar. E vai, de algum modo, recriar o poema mil e uma vezes, como eu próprio, enquanto leitor, recrio os poemas de outros autores sempre que os leio e releio. Quanto ao retorno elogioso ou maldoso, seria falso se dissesse que permaneço pessoalmente indiferente. Não sou suficientemente estóico ou epicurista para alcançar a perfeita ataraxia… Mas quase! Isto é, fui aprendendo um certo modo de olhar as coisas e de as compreender, de tal modo que um elogio o mais que pode fazer é embaraçar-me. Uma pessoa vem dizer-me «gostei muito do seu livro» e isso embaraça-me, constrange-me… Uma crítica negativa não me abala emocionalmente, embora me possa inquietar intelectualmente, na medida em que é crítica. Já um possível comentário maldoso, ofensivo ou de pura má-fé tem um efeito inverso: abana-me emocionalmente, mas deixa-me impávido intelectualmente.

Não há ressentimento quando às vezes fazem uma escolha dos poetas da década x ou y e não está aí incluído?

Quanto a isso, felizmente, tenho de dar graças, porque sou mesmo indiferente. Respeito totalmente a liberdade: fui incluído, muito bem; não fui, pois muito bem, igualmente. Não me interessa nada. Quanto a isso, já fiz o “exame de consciência” a avaliar se não seria da minha parte um fingimento, uma hipocrisia, uma fachada. Mas não. Cheguei à conclusão de que, felizmente para mim e o meu fígado, isso não me perturba. Fico mais perturbado com outra coisa, sinto uma certa tristeza pela incompreensão do leitor simples. Amigos ou pessoas da minha família que me dizem «até gosto do que escreves, mas francamente não percebo nada…» Isso deixa-me um pouco triste. Tenho até feito ultimamente um esforço por me aproximar desse leitor e evitar algumas formas ou expressões que podem parecer demasiado “tortuosas” ou “sofisticadas”. Mas, enfim, a própria poesia, sobretudo a contemporânea, move-se por natureza num campo subtil de símbolos, metáforas, alusões, subentendidos, segundas referências, ironias, busca a sugestão de certas atmosferas, aproxima-se por vezes mais da pintura abstracta, para dar um exemplo. Às vezes ainda me defendo perante essas boas pessoas que me dizem isso e que me entristecem sem querer: digo-lhes «deixem lá, porque vocês também não perguntam a uma partita de Bach o que é que ela significa, e no entanto gostam e captam-lhe o sentido…».

Tem algumas memórias significativas de tertúlias, de grupos literários em que tenha participado?

Não sou nada de tertúlias. Por um lado, pelo próprio facto de viver em Guimarães, que está fisicamente afastado dos grandes centros que são Lisboa e Porto, onde havia (não sei se há ainda) tertúlias e seitas literárias. Estou fisicamente afastado desses meios. Mas, mesmo que aí vivesse, penso que com o meu temperamento, a minha maneira de ser, dificilmente participaria de tais grupos.

Mas a época de criação da editora Pedra Formosa pode-se considerar que foi de alguma tertúlia…

Talvez, de alguma maneira, concedo, tenha sido uma experiência de tertúlia. Quatro amigos que tiveram a felicidade de alimentar um comum gosto pela leitura, a publicação de poesia e umas boas noites de conversa com cerveja. Mas, em verdade, éramos sobretudo e antes de mais um grupo de amigos. O aspecto de “tertúlia literária” terá sobrevindo depois, muito naturalmente, e sempre de modo absolutamente secundário.

Revê-se em alguma família poética? Sente que há afinidades electivas com alguns autores? Venera heróis literários?

É-me muito difícil eleger afinidades, descobrir parentescos. Porque são muitos, são mesmo muitos, talvez todos, aqueles a quem devo uma palavra de reconhecimento, de dívida e gratidão. De todos aprendemos. De uns, exemplos a seguir; de outros, a evitar. Mas não tenho, e muito menos venero, “heróis literários”. Seja como for, claro que reconheço as constelações principais e as estrelas mais brilhantes – e se disser os seus nomes não causarei surpresa a ninguém, pois são os “incontornáveis”, como é de moda dizer-se. São eles que me obrigam a colocar muito alto a fasquia da auto-exigência na escrita dos poemas.

Como vê o papel das revistas de poesia e o possível (ou impossível) diálogo com a “internet” e as chamadas redes sociais?

Em relação às revistas, creio que há uma distinção a fazer. Há (ou havia…) revistas explicitamente programáticas, digamos assim, revistas que assumiam uma ideia condutora acerca da poesia, da arte ou do pensamento em geral, de tal maneira que funcionavam como “órgãos oficiais” dessa ideia, desse movimento. Penso que esse tipo de revista desapareceu em Portugal. Mas há as outras, aquelas que são abertas ou eclécticas quanto aos gostos, formas e entendimentos do que é a poesia. Estas ligam-se frequentemente à personalidade, à “alma” de quem as dirige e lhes dá vida, de tal modo que há umas que resultam esplendidamente e superam o eclectismo sem cair na complacência da mediocridade, enquanto outras, infelizmente, perdem o critério, a “mão”. Por vezes, é bastante embaraçoso tropeçar página sim, página não em poemas que, enfim, no meu critério pessoal, deixam muito a desejar. O mesmo se diga em relação às antologias, que é algo que corre o mesmo risco. Não tenho nada contra uma antologia programática, isto é, que procura fazer uma selecção de poetas e poemas segundo um critério de “escola” e uma militância de gosto. Não tenho nada contra, embora, pessoalmente, não me agrade, sobretudo quando esse critério ou militância são dissimulados. Há também antologias do género de Edoi Lelia Doura, do Herberto Helder, que não são propriamente programáticas, mas pessoais, algo de pessoalíssimo e de “ferozmente” parcial, como ele próprio terá esclarecido. Em relação às antologias que procuram dar um panorama mais ou menos, não digo objectivo, mas significativo da poesia de uma determinada época ou sob um dado tema, julgo que há alguns esforços que foram bem sucedidos, cumprindo, na verdade, uma função muito interessante e, para o leitor, de grande proveito.

Quanto à “internet”, fico espantado, por exemplo, com a quantidade de poemas que é partilhada através do “Facebook”. E a maior parte deles, até onde me é possível avaliar (não sou assim um frequentador muito assíduo, mas lá vou seguindo alguma coisa), nem são poemas de exibição do próprio usuário. Publicam-se poemas de outros poetas, o que me agrada muito. Aliás, isso está, seguramente, entre o melhor do “Facebook”. Depois, claro, há toda uma enxurrada que não interessa nada a ninguém… Por outro lado, na “net” é facílimo recorrer a um “motor de busca” (termo que parece saído de um poema surrealista…) e pesquisar um poeta de quem nunca se leu nada, por mais remoto que seja no tempo ou no espaço! Teclamos um nome e aparecem três, quatro poemas, ou até muitos, além de referências de edição, informações biográficas, etc. E isso é, na verdade, extraordinário. Quanto a editar poesia através da “net”, isso ainda o considero problematicamente. Parece-me que o livro, enquanto forma historicamente bem definida, com o seu carácter físico, ainda é insubstituível. Para além de que a publicação de um livro na “net” implica problemas de segurança e critérios que me escapam. Do ponto de vista do leitor, há também limitações sérias a ter em conta. A leitura de um livro na “net”, só por obrigação, por não se encontrar o texto disponível de outro modo. Porque não tem comparação o livro em papel: poder escrever a lápis uma nota, poder sublinhar à mão, colocar um sinalizador, de modo que o livro passe a ser um corpo íntimo, um objecto extremamente personalizado, que se leva a passear connosco a qualquer lado. Na “net” não é assim, há sempre a interferência tecnológica, a distância do ecrã do computador, é qualquer coisa que está sempre em outro lado, um lado indefinido, a que agora chamam “nuvem”…

Agora uma proposta um pouco desonesta, sugerindo-lhe que se desdobre no papel de poeta e de crítico de si próprio. Como vê o lugar da sua poesia na literatura portuguesa? Sente-se integrado ou como um estrangeiro, um amável intruso?

Sinto-me integrado, embora numa obscura nota de rodapé. Portanto, não cultivo para mim aquela posição do poeta incompreendido, esquecido, recusado. O desconhecimento que possa existir em relação à minha poesia junto de muitos e muitos leitores é, em grande medida, a mim que se deve, pois não sou lá muito bom a fazer, digamos assim, o trabalho de “marketing & publicidade”. Publico o livro e não quero mais saber. Sessões de lançamento são uma deferência para com o editor. Também não nutro qualquer teoria da conspiração por parte de grupos mais ou menos maldosos, que me queiram lançar ao rio do esquecimento. Embora, como todos sabemos, que las hay, las hay. Creio que uma poesia como a que eu escrevo há-de encontrar caminho, há-de singrar. De uma coisa estou certo, e não é questão de modéstia ou imodéstia: tenho a percepção clara de que a minha poesia tem qualidade, no sentido de que é uma poesia de estilo rigoroso, que coloca a fasquia alta, possui tensão, intensidade, um campo vasto de interrogações, é ávida de entendimento. Pode, no entanto, não corresponder às expectativas do leitor. Digamos até que o mais natural é não corresponder às expectativas do leitor. Eu, da minha parte, o que me compete é escrever poesia o melhor que sei e posso. Isso depende de mim. Quanto ao resto, e colhendo a lição de Epicteto, não depende de mim.

Voltando à imodéstia… Sente que aquilo que fez, o seu trabalho e percurso tiveram um resultado com valor?

Sim, sinto-o e digo-o sem vaidade, antes com a naturalidade de um artífice ao ver com satisfação que a peça que executou até não saiu muito mal. Olhando os horizontes do que escrevi, constato que o seu território é exigente, mas vasto e variado, que permite muitas viagens. Observo o que escrevi numa perspectiva o mais distanciada possível e posso dizer que sim, que me agrada. Vejo-lhe os limites e as mil imperfeições, mas, em contas finais, penso que tem valor. Agora, o juízo definitivo está nas mãos dos outros, dos leitores. A minha percepção é suspeita, provavelmente equivocada, não tenho maneira de fugir disso.

Nesse percurso exigente, sente que algo na sua escrita foi mudando com o tempo? Haverá uma fundamental linha de continuidade, apercebe-se de alguns momentos de ruptura? Notamos aquele discurso inicial a que até já chamaram órfico, uma certa exuberância imagética, depois um discurso mais lapidar e elíptico; um extremo rigor formal, mas também um tom mais solto… Fases ou faces da sua poesia?

Penso que são mais faces do que fases. Vejo a questão desta maneira: o percurso em si mesmo pode representar-se como um poliedro e, para se cumprir ou fechar como objecto de vida – esta vida é limitada e fecha-se –, recorre a essas múltiplas faces que sou chamado de alguma maneira a percorrer, a trabalhar, a explorar – o termo talvez seja mais “explorar”. E essa recorrência vai acontecendo ao longo de toda a minha escrita, ano após ano, sem rupturas. Umas vezes mais “órfico”, outras mais lapidar ou elíptico, conforme as conveniências da musa. Seja como for, penso que há um factor invariável: o da exigência de rigor, de exactidão poética.

Nunca escreveu nada, por exemplo, para crianças?

Escrevi um conto a propósito de Raul Brandão, O Senhor da Casa do Alto, que foi editado pela Sociedade Martins Sarmento, nos 150 anos do nascimento do escritor, em 2017. Com ilustrações, muito bonitas, de Mafalda Neves.

O “invisível é simples”, para usar um título seu. A este propósito, poderíamos colocar a questão do papel da transcendência e de uma certa espiritualidade na sua poesia… Deus será “o número perfeito”, ou estará na matéria do universo que a sua poesia também tanto invoca?

Ora bem, eu, que estou por dentro da minha poesia, com a cegueira própria de quem está por dentro de alguma coisa, apercebo-me dessas cordas tensas que remetem, na verdade, para uma inquietação em relação ao nosso lugar no universo e para uma demanda, uma interrogação sobre o divino, o sagrado. Essa tensão está presente desde o meu primeiro livro, mas foi tomando, reconheço-o, uma amplitude e uma explicitação cada vez maior, de tal maneira que o extenso livro que me anda agora a escrever está totalmente absorto em Deus, imerso na espiritualidade, que é, antes de mais, inteligência, conhecimento, matemática do espírito. Quando apliquei a ideia de “número perfeito” ao título do meu primeiro livro, não estava a reportá-la a Deus, de Quem eu, nessa altura (1984), ainda me furtava. Mas Deus, na medida em que podemos definir-lhe um conceito, é precisamente isso: a perfeição. É o Perfeito, por definição. E o número perfeito é então, digamos, um número divino. Atenção: tudo isto, em si mesmo, pouco me interessa, os cabalismos, as especulações numerológicas, os pseudo-esoterismos que por aí deliram, etc. Podem proporcionar leituras muito curiosas e divertidas, mas não me interessam. Podem ser até um temível factor de desvario mental. Quanto ao “invisível simples”, trata-se de uma expressão de um matemático, René Thom, reportada a um certo modelo de descrição matemática da realidade física em que nós nos movemos, à nossa escala. Aquilo a que ele chama “teoria das catástrofes” (que nada tem de catastrófico ou calamitoso…). Ao escolher essa expressão para título do meu livro, não estava, mais uma vez, a pensar em Deus, pois nessa altura (1987) ainda Nele não pensava. Mas, atirando para o lado, acertei em cheio! Deus, efectivamente, é o Invisível por definição, assim como também é o Perfeito, e também o Simples! Deus é, por natureza, simples, não é composto. Ora bem, retomando o que dizia, fui conduzindo essa inquietação de fundo à linguagem e aos gestos apropriados, através de um labirinto de perplexidades, não só na minha vida interior como na minha vida prática, do exterior social. Fui-me deixando ocupar pelo que as minhas seguranças rejeitavam. E num processo de maravilhamento surpreendido, eis-me a tomar conhecimento de uma sabedoria ancestral, que a “cultura” parece esforçada em esconder-nos ou em mostrar improvável. Fiz então (e continuo a fazer) leituras e releituras transformadoras, num espírito de confiança e expectativa, sem pressas, esperando pelo levedar da massa. Foi com fascínio que revisitei a Palavra dos Evangelhos, os textos bíblicos em geral e, designadamente, os seus poemas de grandeza insuperável (o Cântico dos Cânticos, os Salmos, Isaías, os “hinos” de S. Paulo, todo o Apocalipse, só para citar os exemplos mais conhecidos). Li em escuta os Padres da Igreja e Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino (até onde me foi possível). A Filocalia. Esforcei-me por acompanhar a pura intelectualidade de um Eckhart, ou o alto voo dos místicos (e grandes poetas) espanhóis, Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz. Com exaltação, li o que pude (e até onde consegui compreender, sempre em traduções, pois não tenho outro recurso…) dos Upanishades, dos comentários de Shankaracharia, do Bhagavad-Guitá (nomeadamente, na magnífica versão do António Barahona). Mas também de Lao Tse e Tchuang Tse, cuja visitação, embora misteriosa, teve sobre mim um efeito verdadeiramente fulgurante. Não posso, por fim, deixar de referir, com emoção, aqueles outros que me abriram campos e campos de inteligência espiritual: refiro-me a escritores e poetas sufis, como Junaid, Ibn Arabi, Rumi, Attar, Sulami… De Ibn Arabi é para mim inesgotável a leitura de um livro que, na sua formidável obra, até tem apenas uma importância secundária, um livro sobre Dhu-l-Nun al Misri, um mestre sufi do século X. Na tradução francesa, aliás magnífica, está editado com o título de Les Soufis d’Andalousie, suivi de La Vie Merveilleuse de Dhû-l-Nûn l’Égyptien. Uma verdadeira preciosidade. Estou infinitamente grato por ter tido notícia, lido e entrado nestes textos, de que só refiro os que de momento me ocorrem, todos eles tão sistematicamente silenciados pelas sirenes estridentes deste mundo. Neste aspecto, e não só, muito devo a René Guénon, guia seguro no meio de tanta confusão. Mas basta. Já falei demais. Desculpem-me esta girândola de referências a livros e nomes. Sinto, apesar de tudo, que ela ajudou a responder à pergunta que me fizeram. E, sobretudo, pode ajudar um possível leitor a contextualizar a minha dicção poética numa determinada tradição. Bastante alheia, aliás, ao “cânone” dominante ou, pelo menos, genericamente reconhecido.

Haverá alguma especificidade do conhecimento poético que traga uma mais-valia à poesia? Será uma forma de conhecimento tão útil, tão penetrante como o conhecimento científico, filosófico ou outros? Um “inutensílio”, como propõe Manoel de Barros?

Admiro muitíssimo Manoel de Barros. Tão diferente da minha maneira de escrever poesia. Mas isso é que é bom… Quantas vezes não pego no livro dele (aí um calhamaço, com quase toda a sua poesia) e depois fecho-o e penso «quem me dera escrever assim…». Mas não está na minha maneira. O meu temperamento poético é completamente diferente. E, no entanto, há nele essa coisa extraordinária de uma enorme ressonância cosmológica e mesmo metafísica, embora com aquele falar aparentemente terra-a-terra acerca das pequenas coisas, de bichos e de homens. É maravilhoso. E esses achados de vocabulário, como “inutensílio”, são notáveis. E ele cria-os às centenas…

Creio que sim, que a poesia é uma forma nobre de conhecimento. O conhecimento poético é um altíssimo conhecimento e de tal maneira é um altíssimo conhecimento que todas as tradições sapienciais da humanidade são ditas poeticamente. Parece que não há outra linguagem que se possa falar entre os homens e os deuses… No nosso mundo, na nossa civilização, sobretudo após o desmoronar da Idade Média, foi-se inflectindo para um discurso de maior subordinação ao real sensível, captado com dispositivos estritamente racionais e experimentais. Daí uma crescente desconfiança em relação às metáforas, uma vigilância implacável sobre tudo o que pareça suspeito de fantasia, poética ou religião (assim mesmo, tudo confundido e misturado!), até chegar aos extremos de arrogância do positivismo e, em geral, daquilo a que se pode chamar a superstição tecno-cientificista. Sem dúvida que, nestas condições, a poesia parece ter recuado quilómetros enquanto forma reconhecida de conhecimento – mas talvez seja um recuo como o que precede a grande onda do tsunami… Hoje em dia, tem-se a impressão de que a esmagadora maioria da população, designadamente, as pessoas universitárias e incertamente mais cultas, mesmo as que apreciam poesia (“ah, a poesia!”), a põem numa prateleira à parte, como “inutensílio”. De algum modo, consideram-na sob a espécie do florilégio, um discurso mais ou menos de ornamento, diletante e sentimental. Ora um poeta, para mim, é o que possui uma visão completamente antagónica desta. A poesia é verdadeiro conhecimento, profunda compreensão do real, síntese maior da contemplação e da acção. Pelo contrário, o discurso tecnocientífico, sobretudo quando se aproxima daqueles extremos positivistas, é que é uma deliberada (mas útil e eficaz…) amputação do real. Pois, embora de modo totalmente legítimo e segundo o método restritivo que lhe é próprio, ele debruça-se apenas sobre o “facto” sensível e mensurável, apreendendo somente uma fina película das múltiplas e múltiplas que compõem as inumeráveis dimensões da realidade.

Como vê o panorama da poesia portuguesa contemporânea, a preferência por um tom que dispensa uma certa “gravitas” ou a tendência para a secularização a que parecem ser mais sensíveis os tempos que correm… A sua poesia surge-nos um pouco ao arrepio de tudo isso…

Na verdade, tenho consciência de que a poesia que escrevo é de algum modo estranha no panorama actual do que se vai escrevendo e publicando. Mas é o que é. E certamente, como há liberdade de expressão e de circulação do livro, digamos assim, isso em nada me afecta. Até tenho tido algumas indicações, felizmente, de que a minha poesia vai tocando muita gente. Mas, na verdade, penso que esses leitores se dão conta de que estão perante um território poético algo diferente. E tem de ser diferente, porque se move num contexto diferente. O panorama da poesia portuguesa contemporânea, contudo, independentemente do meu distanciamento, apresenta muitas vozes, muitos casos de poetas que me agrada ler. Sem dúvida, são flagrantes, falando em geral, alguns dos sintomas e tendências que foram referidos, como a extrema secularização ou dessacralização, a relaxação formal, a intrusão de “causas” e de sociologismos e psicologismos vários, uma perda absoluta do sentido de uma “gravitas”da voz poética, o cultivo de uma pose provocatória e mesmo “maldita”, que assegura o conforto da moda, um humor que muitas vezes se atola no mero sarcasmo e no grotesco. Digamos que é, num significativo número de casos, uma poesia que se pretende humana, demasiado humana, para falar como Nietzsche, uma poesia que se busca e encontra e se compraz na falha, na fenda do humano, recusando toda e qualquer possibilidade de redenção. E, no entanto, surpreende-nos sempre este prodígio quando deparamos com um verdadeiro poema: que até o sarcasmo e o grotesco, o deliberado prosaísmo, a deambulação pela baixeza, esse terra-a-terra do humano sem horizonte, que até tudo isto, numa verdadeira voz poética, é resgatado, é transformado. E, então, percebemos que, apesar das aparências, já não é o Acusador que fala, mas o homem ferido, de um ferimento de amor.

Em entrevistas recentes tem falado muito na questão do louvor, numa potência do louvor, que estaria já sugerida mesmo nos primeiros poemas. Está consciente desta sua tendência para o louvor?

Absolutamente consciente. De modo desajustado ao estado das artes e da poesia contemporâneas, tenho para mim que um dos primeiros vínculos do olhar poético é o de resgate do significado, do sentido, o de resgate de beleza e verdade. Não tenhamos receio de aplicar estas palavras. Os tempos chegaram a uma tal situação de confusão mental que nos vemos obrigados a pedir desculpa sempre que falamos de verdade e de beleza! É espantoso! Claro que, precisamente por ser assim, ao discurso poético se exige a máxima lucidez, que não iluda e muito menos ignore o absurdo, o mal, a fealdade, a grande mentira que comanda o mundo. Esta é, realmente, uma condição problemática do poeta. Por ela, a criação poética é colocada num lugar de crise, um lugar crítico. E basta um mínimo de desfocagem para soar a falso, para ser hipócrita, para ser farisaico, moralista e artificial. Ora, o louvor, no seu sentido preciso, que é também o mais elevado, é uma superação dessa condição problemática, desse lugar crítico. O louvor é inseparável de um olhar novo, de uma intuição intelectual profundamente transformante, que se apercebe da “conjunção dos opostos” e supera os dualismos. O louvor não decorre de um plano afectivo, mas sobretudo cognitivo: é a grande compreensão, a grande aceitação, o grande assentimento (e, por favor, não se julgue que isto tem a ver com conformismo ou passividade…). Nesse estado, o poema realiza o seu máximo de lucidez e de tensão.

Outro termo muito usado nas últimas entrevistas foi “vigilância”. Nota-se que se está a olhar, pondo-se de fora. Fomenta essa capacidade?

A vigilância a que me refiro ao falar do processo ou fenomenologia da criação de um poema é a atitude fundamental na “oficina” do poeta. Todas as capacidades psíquicas e espirituais ficam concentradas no acto da escrita. Tudo fica debaixo de uma atenção focada. Vigia-se tanto a vírgula duvidosa, quanto a ideia mais geral que nos assalta; tanto a sonoridade e o ritmo de um verso, quanto a estrutura oculta que permite ao poema aguentar-se. Tal vigilância implica que o poeta escute, faça o silêncio e o vazio necessários à recepção de uma palavra. Este é o aspecto passivo ou receptivo da “oficina”. Mas, por outro lado, exige que o poeta actue, fale, escreva, tome permanentemente decisões, convoque o poema, faça e desfaça, rasure e volte a escrever. E este é o lado activo da “oficina”. Vigilância, portanto. Nada que não esteja presente em qualquer outro campo de criação.

Falemos agora da Arte Nenhuma. Explique-nos então o que é isso da arte nenhuma numa reunião dos seus poemas… A escolha do título foi de quem?

Foi minha. Um pormenor: a princípio escolhi outro título e devo ao editor o aviso de que esse título não iria funcionar bem. Prometi-lhe então escolher outro e ei-lo aqui, Arte Nenhuma.

O título é de facto retirado de dois ou três poemas em que esta expressão aparece. A escolha deste título não foi determinada por uma questão de mero bom efeito. Tratou-se, sobretudo, de realçar aspectos da criação poética que me parecem fundamentais. Posso justificar assim essa escolha: primeiro, pela ironia, que muito me agrada; em segundo lugar, pelo deliberado cuidado de que a “arte” não se exiba nos poemas, não estorve o seu acolhimento, se remeta à obscuridade e humildade da oficina; e, por último, por um desejo de “impessoalidade”, de tal modo que a poesia não me possa mais ser atribuída, me ultrapasse infinitamente, esteja sempre muito além das minhas pessoais e contingentes limitações. Como uma equação não é do matemático, mas da Matemática, mesmo que tenha sido ele a “descobri-la”, sem, portanto, “arte nenhuma”…

É um pouco aquela ideia, que também vem da teologia, da “douta ignorância”… Não é um pouco isso também? O saber que se despoja de si próprio, chegar a um ponto de sapiência em que nos despojamos…

Não sei. Talvez. Esse despojamento, ou esvaziamento, a “kenosis”, é um momento fundamental da audição e da transformação espiritual e, de certo modo, também dessa abertura total à palavra que chega, própria do poema.

Um dos Pessoas andou também por aí, Alberto Caeiro…

O Pessoa é todo muito construído. Alberto Caeiro é uma pose, sem dúvida genial, mas uma pose. A sua naturalidade, a sua anti-metafísica, aquele olhar imediato e simples que escarnece de conceitos e de intelectualismos, isso é uma refinadíssima pose intelectual… A expressão “douta ignorância” remete, antes de mais, para o “apenas sei que nada sei”, de Sócrates. É uma atitude existencial que fundamenta uma filosofia. Tem uma célebre expressão mística na extraordinária obrinha de autor anónimo medieval, A Nuvem do Não-Saber. E encontra um expoente de reflexão teológica e metafísica no ainda mais célebre livro “De Docta Ignorantia”, do Cardeal Nicolau de Cusa. Seja como for, como Deus é, em si mesmo, insondável e incognoscível, aquele que afirma conhecê-Lo está a mostrar desconhecimento; e aquele que reconhece que não O conhece, esse é o que possui conhecimento. A vida do espírito trabalha sobre uma linguagem de paradoxos, desampara-nos os assentamentos lógicos e ideológicos. Assim também, similarmente, com a poesia: quem se arroga saber o que ela é, não é poeta; o que confessa não o saber, esse, embora com rubor e pudor, está em condições de se chamar poeta, não possuir “arte nenhuma”.

A geometria aparece muitas vezes nos seus poemas, é uma inspiração…

É um gosto pessoal, mas também uma necessidade de aproximação ao real, um eminente recurso simbólico.

Será que podemos ver a leitura e a escrita de poesia como um estilo de vida?

Ninguém vive de ler e escrever poesia. Mas “nem só de pão vive o homem” e a leitura e a escrita de poesia podem, sem dúvida, constituir aquilo a que se chama uma razão de viver. No meu caso, a vida e a poesia têm viajado juntas. Estorvam-se uma à outra, mas há muito tempo que são inseparáveis. De certo modo, já se parecem uma com a outra. Não sei dizer quando é que começou esta ligação. Porventura, passou-se qualquer coisa, em algum momento já remoto. Mas a flecha do tempo é irreversível, há movimentos em que qualquer perturbação nas condições iniciais geram uma multiplicidade de efeitos, não susceptíveis de previsão. E não é possível voltar atrás. Basta, na estação de Santa Apolónia, haver um guarda-freios que mexe na alavanca e desloca, apenas uns centímetros, determinados carris para toda a composição se desviar milhares de quilómetros, para “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o Mundo”… Alguém, algures, mexeu nos meus carris. E eis-me a dar com a vida a escrever livros com poemas e a falar de mais numa entrevista como esta.

Quer falar-nos dos projectos de escrita com que se ocupa actualmente?

Actualmente estou totalmente absorvido num único livro, que já me ocupa há anos. Espero que em 2023 esteja concluído. É um projecto de grande fôlego, com isto querendo significar que ultrapassa as minhas parcas capacidades… A curiosidade é que se trata de um longo poema de prosa ritmada, com uma estrutura assumidamente narrativa. E em oitavas.

Guimarães, 25 de Junho de 2022

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