A PROPÓSITO da exposição “Em Direção ao Azul”, que revela parte da investigação que Domingos Loureiro está a desenvolver no âmbito do Doutoramento, desafiamos o autor a verbalizar a técnica ali aplicada. Trata-se de pintura sobre vidro acrílico, em que a pintura de cariz gestual é realizada de modo inverso à pintura tradicional, registando um acontecimento na qual a eminência de erro é paralelamente um risco e um estímulo. É mais uma manifestação da dependência que o artista tem e da qual não procura a cura. Quanto ao azul, diz, que mais do que uma cor, é um estado emocional. Para ver e sentir até domingo.

Por Paulo Moreira Lopes

A técnica usada nas obras da exposição “Em direção ao azul” é uma criação sua ou uma repetição, aperfeiçoamento ou variante de uma técnica já existente?
A pintura sobre uma matéria translucida, como vidro ou plexiglass (comum vidro acrílico), não é novidade. O recurso ao vidro aconteceu, contudo, por um acaso, quando procurava um material de produção industrial, que na altura designava por material frio, onde aplicaria tinta, que designava de material quente, evidenciando o paradoxo entre a pintura e o suporte. A ideia de que parti foi a de trabalhar a tinta como matéria orgânica sobre um suporte de cariz industrial. Neste processo de investigação, trabalhei com metal, madeira lacada, pedra, vidro, pvc, plexiglass, entre outros. A descoberta aconteceu quando, ao pintar sobre vidro, me apercebi do potencial do suporte, não na face (sobre) mas na contraface (sob).

No pressuposto de ser uma criação sua pode-nos explicar o processo/fases que esteve na origem da mesma?
A pintura normalmente é uma sucessão de camadas, em que as primeiras camadas que realizamos ficam submersas (e invisíveis) no quadro final, algo que queria contrariar, porque as primeiras camadas são as mais cruas e mais honestas. A pintura como sucessão de camadas permite a seleção de processos, por vezes assentes no virtuosismo, o que não me interessava.

Vejamos o exemplo da música contemporânea, muito assente em estratégias decorativas que iludem o melómano, quando o essencial seria a interpretação dos músicos e da voz. Os recursos a processos de manipulação da voz, do som, do ritmo, também fazem parte da construção da música, mas assumem-se muitas vezes como técnicas que iludem o ouvinte, o que retira alguma autenticidade à interpretação. Na pintura também se podem utilizar recursos destes, e são extremamente frequentes, contudo, a mim interessava-me muito mais a capacidade de interpretação à capela, sem ruído de fundo e sem recursos que pudessem distorcer ou amenizar a minha atuação. Nesse sentido, a opção passou por induzir o corpo e o pensamento a agirem de modo despido de estratégias ou de recursos visuais estilísticos. A pintura passou a ser mais direta, uma experiência mais autêntica, pelo menos para mim.

Tem consciência que o resultado final da obra está muito condicionado pela técnica, ou seja, existe uma enorme preponderância da técnica face à vontade ou desejo do artista já que a possibilidade de correção do executado não existe, a não ser que recomece nova obra?
Esse condicionamento existe e é intencional, porque de outro modo não conseguiria concretizar este trabalho. A condicionante imposta faz parte de um programa que desenhei de antemão.

É muito difícil pintar com a honestidade que tenciono sem recurso a algo externo. É semelhante ao recurso a substâncias psicotrópicas utilizadas para desligar ou desativar a nossa capacidade racional. Ora, o consumo dessas substâncias é também um ato racional que produz uma aparente libertação. Como não tenho particular interesse por esse tipo de efeitos, teria de procurar induzir em mim algo que obrigasse o meu corpo e o meu cérebro a agirem de modo distinto daquele que normalmente seguiria, ou seja, de forma mais convencional com processos preexistentes. A técnica é claramente uma imposição assente num constrangimento que me obriga a agir, numa constante reformulação das estratégias em resposta a cada ação e a cada gesto, tornando-se num acontecimento profundamente fenomenológico. O erro, como se percebe, é sempre um risco e é a única garantia de que pode acontecer, mas isso só aumenta o interesse.

Podemos estar então face a uma obra aleatória e muitas vezes em contradição com as pretensões do artista?
Em contradição nunca, porque o objetivo é a coexistência e a descoberta. Aleatória, poderia ser se não fosse um processo de negociação constante, porque existe lugar para o acaso e, consequente, para o aleatório, mas não se resume a essa situação. Não procuro o acaso, mas provocar um acontecimento que só pode ocorrer naquele instante, naquela situação. O acaso é parte da ação, mas nunca o resultado. Vejamos um exemplo muito comum na prática dos artistas: quando se pinta com elevada destreza com a mão direita, em que tudo está dominado, é frequente o recurso à mão esquerda para desbloquear uma pintura, porque a mão esquerda não está domada do mesmo modo e vai produzir uma expressão mais autêntica, assente muitas vezes na incapacidade de domínio e eventualmente alguma aleatoriedade. O que resulta deste processo é uma consequente descoberta de novas expressões que poderão valorizar o domínio já adquirido. Nesse momento, o pintor evolui e, consequentemente, a sua pintura. Esse recurso já não seria suficiente para mim, mas o princípio é semelhante, apenas com mais variáveis.

O efeito da obra, sendo assim, estará muito dependente da subjetividade do espetador, da sua capacidade em identificar ou associar às imagens representadas no quadro outras imagens ou sensações pré-definidas?
Uma pintura minha termina quando já não consigo ter influência na imagem. Como as camadas se vão sucedendo, a minha distância do espectador é cada vez maior, ao ponto de, mesmo que o quisesse, a pintura já não autorizar a minha intervenção, algo que no processo normal de pintar nunca encerra. Nesse momento, sei que o quadro já está concluído e que a partir daí eu já não existo para o quadro, o que existe é a pintura como registo do momento em que estive em contacto com o suporte. Quase que se poderia falar de congelamento de um tempo e de uma experiência. Nesse momento a pintura existe para o espectador, onde também eu me insiro. A pintura é agora produtora de experiências que vão depender de quem a está a observar e, em especial, do respetivo estado emocional.

As características abstratizantes das imagens, mas também do possível cariz figurativo, obrigam o espectador a reconstruir o resto da imagem recorrendo à sua própria identidade e natureza. Deste modo, a pintura apresenta-se como um processo de sugestão emocional, dependente da experiência de vida do próprio espectador. As pinturas induzem à contemplação, algo que será sempre profundamente pessoal.

Não será, por isso, uma obra fixada (determinada), mas como que uma proposta de exercício para o espetador. Será assim?
O espectador, onde também me insiro, logo depois do quadro estar concluído, é parte essencial para o sucesso da pintura, porque a cada espectador corresponde uma nova pintura.

Considero que existe uma ideia de sublimação, que se busca e onde assenta a vontade de fazer uma pintura mas também o desejo de contemplação. Esse estado, quase espiritual, é algo que por vezes encontramos na Natureza, o que faz dela uma excelente promotora experiencial. Este estado de sublimação é algo que inquieta, mas que acredito nunca poder ser domado, podendo apenas ser encontrado, normalmente quando é mais inesperado. Penso que está relacionado com uma forma sublime de comunicação.

A pintura é, de certo modo, um sistema de comunicação inteligível, em que o próprio autor não tem noção objetiva do que tenciona dizer, mas que precisa de tentar identificar, do modo como consegue, através do pensar e do fazer da pintura. Esta missão, semelhante à do poeta, escritor, músico, filósofo, teólogo, entre muitas outras áreas é algo que assenta na busca de algo intrinsecamente associado ao humano, mas dificilmente alcançável, e que no meu caso gosto de definir como Sublime.

A minha pintura é realizada para aqueles que não se limitam a dogmas e que assumem a importância da contemplação, da dúvida e do questionamento, que não ficam indiferentes a alguma comunicação inteligível que as pinturas possam ter, e que estas possam contribuir para gerar ainda mais dúvidas, questionamentos e contemplação, mais do que respostas. Nesse sentido, a superfície espelhada das pinturas leva a que o espectador esteja dentro da obra e que em determinados momentos se aperceba mais do seu reflexo do que da pintura. O reflexo leva à reflexão e nessa fase já o espectador foi afetado pela pintura.

Por que escolheu a cor azul? Por ser a cor mais predominante na natureza (céu e mar)?
Gostaria de responder que seria um afeto, induzido pelo meu querido Futebol Clube do Porto, mas não. O azul tem um potencial de indução emocional extraordinário. O azul é uma cor fria dentro do espectro cromático, contudo, e dependendo das relações que estabelece, pode tornar-se profundamente reconfortante, quase uma cor quente. Quando refiro reconfortante é propositadamente um estado emocional, porque dentro do espectro de cor, nunca poderia ser uma cor quente. Estranhamente não procuro relacionar o azul com água, mar, chuva, atmosfera, etc, mas com algo muito pessoal, como se fosse capaz de sentir todo o mundo visível e invisível no espectro de tons que o azul possibilita. O azul preenche-me mais do que qualquer outra cor e, por isso, representa muito mais do universo que tenciono abordar quando pinto.

Esta opção estética (podemos defini-la assim?) é para continuar ou esgotou-se com a presente exposição?
Objetivamente posso responder que não termina aqui. Por um lado, toda a investigação que tenho desenvolvido no âmbito do meu Doutoramento assenta neste trabalho, sendo que deverá realizar-se, pelo menos, mais uma exposição, mais extensa do que esta. Por outro lado, não posso dizer até onde, nem até quando vou continuar a realizar este trabalho. A pintura é uma dependência que tenho e da qual não procuro a cura. Além disso, este trabalho é profundamente filosófico e depende das inquietações que forem aparecendo. Enquanto perdurarem, continua a fazer sentido. Se por acaso passar a ser uma opção estética, ou um dogma, deixará de fazer sentido e provavelmente seguirei outro caminho, tal como já acontecera no passado com o meu trabalho de madeira sulcada. As inquietações deixaram de ser essenciais e, desse modo, não fazia sentido manter a sua continuidade. Ser artista deve ser isto, porque quando o produto começa a ser passível de ser circunscrito, desejamos outra coisa. Recupero aqui a situação que referi anteriormente dos pintores destros que recorrerem à mão esquerda para produzirem resultados inesperados. Para mim esta situação faz tanto sentido como a afirmação de Picasso: – Aos catorze anos pintava como Rafael, depois passei o resto da vida a tentar pintar como uma criança.

Publicado originalmente em 12 de Fevereiro de 2015

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1 COMENTÁRIO

  1. Vi, na FBAP, a exposição a que o texto se refere, como vi muitas outras de Domingos Loureiro
    É excepcional como artista mas também como ser humano.Tive o privilégio de ser sua aluna na escola de pintura UTOPIA.
    Obrigada, Domingos

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