A EXUBERANTE prosa de Onetti entra por este mês dentro sem qualquer pudor ou atrito, os santos prepararam um sonífero para as nuvens que já embaraçam o céu, o frio não chega a ser feroz, mas já arreganha os dentes, há qualquer coisa de medíocre neste mês, tenho a certeza, de história inacabada, de tristeza opaca e destituída. Felizmente a minha cidade não é esta, quer dizer, não é exactamente esta, a minha cidade é tudo aquilo que eu queria que a minha cidade fosse também, “porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso”, como disse o poeta, há muito que a minha cidade já não mora em Novembro, a minha cidade está cada vez mais compósita e mítica, à semelhança de Santa María, a cidade inventada por Onetti a partir da sobreposição de duas cidades tão próximas e tão diversas como Buenos Aires e Montevideu.

E eu, o que é que eu hei-de sobrepor a este mês para o tornar mais nítido? Lembro-me de Novembros tingidos pela luz de corpos que se amaram com violência. Lembro-me de noites chuvosas e frias que a juventude rasurava com não sei que orgulhoso e insaciável sentido. Lembro-me da longa escadaria de mármore que, na minha infância, representava Novembro em direcção ao céu.

No seu “Decálogo (más uno) para escritores principiantes”, o autor de “A vida breve” salienta, entre outras coisas, a necessidade constante de mentir. É o seu décimo mandamento. O quinto, por exemplo, exalta a sinceridade e o dever de escrevermos sempre e apenas para aquele outro que trazemos dentro e que nunca se deixa enganar. Os conselhos de Onetti, chamemos-lhes assim, não raras vezes se sobrepõem e colidem. A vida é, ela própria, uma maravilhosa sobreposição de verdades e mentiras, de cidades autênticas e fictícias, de tempos e espaços luxuosos e desertos, reencontrados e perdidos.

Em Novembro é preciso, por isso, sermos totalmente sinceros. Em Novembro é preciso mentir.

SOBRE O AUTOR: André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 208).

Publicado originalmente em 4 de novembro de 2016

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