ALGUNS aproximaram-se demasiado da lucidez. Quando o pensamento ganhou uma estranha autonomia e começou a levar tudo à sua frente, perderam-se. Agora já pouco sabem, ou pretendem saber, a respeito da cidade e do tempo. Quando olham para o passado, sentem frio, uma vertigem, um relâmpago, silêncio. Lembram-se de como foram violentos e sinceros (há inúmeros vestígios de orgulho por entre a vergonha e o veredicto), de como caíram na armadilha da vida, de como foram parar ali, àquela espécie de palácio ausente, àquele pequeno país com tanta gente deslocada e pouco nítida.
Alguns querem ainda conhecer. Esforçam-se por escapar das garras das rotinas. Reactivar a vontade de existir. Sonham com o regresso à normalidade, ao domínio, à independência, à cidade proibida, mas depois têm medo. E ficam. Estão cercados pela perseverança dos jardins, protegidos pela discrição da natureza. Fora dali, o mundo é imenso e inadmissível.
Através do olhar de Jorge Pelicano, o realizador do documentário, ficamos a conhecê-los. Por detrás dos muros do Hospital Conde de Ferreira, vejo o que nunca pude ver e o que nunca imaginei que pudesse ali constituir-se: uma verdadeira família. Um grupo de homens, aparentemente ensimesmados e dispersos, continuam a trabalhar na construção de um significado comum e a colaborarem com as leis da sobrevivência.
Este aspecto acentua-se quando o actor Miguel Borges entra em cena, confrontando-os com um poema escrito por uma das mentes mais perturbadas e perturbadoras do século XX, o Ângelo de Lima, um poema que acusa uma enorme entropia e os expõe diante de si mesmos. Contra a exasperação radical do pensamento, descrita no poema e testemunhada nas conversas que o actor vai mantendo com os pacientes, contra a paralisia subsequente, contra o instante patológico da queda no vazio, Miguel Borges recebe uma história, uma pista, um manifesto, um relincho.
A certa altura, acontece algo similar à transferência. Os pacientes parecem afastar-se da secura, da desordem, da tentação do abismo, enquanto o actor, a galope nas suas turvas e velozes interiorizações, tenta superar a barreira da representação, a bestialidade do corpo e da língua, e atingir, numa “douda correria”, um círculo perfeito.
SOBRE O AUTOR: André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 208) e Rapina (douda correria)
Publicado originalmente em 5 de março de 2017