COMPARTILHAR
Inicio A Cidade Subtil Tentativa de ...

Tentativa de esgotar um lugar portuense

Tentativa de esgotar um lugar portuense

1
1841

ESTOU sentado numa esplanada da Praça da Liberdade e recordo a homenagem excessiva que um célebre escritor francês, Georges Perec, prestou um dia à vida moderna e à sua irremissível monotonia. Perec resolveu hospedar-se durante três dias consecutivos numa praça parisiense, a place Saint-Sulpice, e de 18 a 20 de Outubro de 1974 o escritor nada mais fez do que ocupar vários ângulos dessa praça e anotar tudo o que via acontecer ali. As suas esquemáticas observações rapidamente foram assumindo um caudal imprevisto e, no final, o autor, para além de ter construído um espartano inventário de rotas, hábitos, automatismos e (raras) incursões reflexivas, acabou por retratar o seu tempo, erguendo uma sinédoque do mundo contemporâneo e citadino, só vagamente comparável aos prodígios do time-lapse e a outras técnicas avançadas de cinematografia.

Perec chamou a este exercício “Tentative d’épuisement d’en lieu parisien”.

Estou sentado na Praça da Liberdade e sinto-me tentado a imitar Perec e a sua luminosa tentativa. Sinto-me tentado a anotar no meu pequeno caderno todos os passos e rastilhos, as movimentações dos carros e dos autocarros (sempre tão concertadas como consequentes), o voo oscilatório das pombas, que teimam em perturbar a alta impassibilidade de D. Pedro IV e do seu cavalo de bronze esculpido.

Sinto-me tentado, terrivelmente tentado. Por isso, abro o caderno, aponto a caneta, mas, quando vou começar a escrever, um táxi pára à minha frente e no banco de trás está um homem que chora e bate ruidosamente com as mãos na cabeça, gritando qualquer coisa incompreensível. O mundo, a cidade, a praça, Perec, toda uma tradição de exercícios e homenagens excessivas abate-se sobre mim. Os segundos, os minutos, as horas passam e o homem continua a destilar o seu desespero, com lágrimas, sequências de gestos e gritos.

Entretanto, dei-lhe um nome, uma identidade, restos de um passado plausível. Foi assim. Até me sentir eu esgotado por aquele passageiro permanente.

Texto de André Domingues e fotografia de J. Paulo Coutinho

Publicado originalmente em 4 de Novembro de 2015

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here