QUANDO me aborreço da cidade superficial, corro para a estação de metro mais próxima. Gosto de sentir na pele o que Jean Valjean, o miserável herói de Victor Hugo, sentiu quando desceu aos esgotos de Paris. Às vezes, é preciso descer bem fundo, para que depois a ascensão se cumpra, inteira e miraculosa. Lá em baixo, o inaceitável espera por nós. É a parte submersa do iceberg de Freud.
Os esgotos parisienses do século XIX tornaram-se, entretanto, tão assépticos como um bloco operatório, mas não foi por isso que nos deixaram de aliciar com as suas potencialidades eróticas, suavemente inviáveis, transfiguradoras. Julio Cortázar, talvez melhor do que qualquer outro escritor, conseguiu entrever uma dimensão mitológica nessa cidade que respira por debaixo da cidade, e encontrou na vibrante viagem metropolitana uma oportunidade para relançar novos espaços ficcionais, versões do tempo e desaparecimentos contraditórios.
Dentro do metro, o mundo é já uma colecção de máscaras sem rosto, um convite à inconfidência e à abstracção, um tributo à ordem tensa e improvável do sonho: nos sofisticados subterrâneos das nossas cidades projectam-se, a grande velocidade, pensamentos e olhares transgressores, júbilos inaudíveis e fantasias minuciosas. Veja-se como a tensão sexual atinge dentro das carruagens valores auspiciosos. Para esse efeito, várias coisas concorrem: o famoso formato fálico das composições, a natureza insondável dos túneis húmidos e vertiginosos, a forma como o veículo atinge uma espécie de êxtase na escuridão, para depois desacelerar progressivamente em direcção à luz refractária da estação insólita.
E depois há os que esperam, os que saem, os que entram, os que descem, os que sobem, os que correm, apesar de estarem em péssima forma, até ficar sem fôlego, com o coração estrangulado e o olhar sulcado e devedor. Tudo isto é performativo, vagamente sonolento e amaldiçoado, banal e irrisório, e embora se distingam, um pouco por todo o lado, os mapas das regras e os contornos do pudor, debaixo do solo só a natureza elementar é capaz de falar mais forte.
SOBRE O AUTOR: André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 208) e Rapina (douda correria)
Publicado originalmente em 3 de fevereiro de 2017