É UM domingo de Novembro, não chove, mas a humidade está a cerca de 88% e a cidade parece a sala de um imenso teatro, segundos antes de o espectáculo começar. Faz-se um silêncio quase obrigatório, porque a escuridão é cruel, interior e, de certa forma, gratificante. Mas o tempo passa. O silêncio torna-se incómodo. As expectativas, gritantes. E não há nada nem ninguém no palco. Não há sequer uma voz redentora que se apresse a desculpar aquela comédia negra que se sobrepôs à normalidade, comunicando a morte súbita de um actor, ou a imprevista relutância da luz incidir numa vida que parecia ser a única chave para o absurdo daquela peça abandonada: a condição humana. Só a insuportável velocidade da escuridão.
No entanto, após um longo período de estranheza, onde nada aparentemente acontece senão um burburinho que recrudesce, com focos de indignação e pedidos de esclarecimento à produção do espectáculo, o silêncio volta a instalar-se na sala. De tal forma a escuridão se tornou ampla e inviolável que já ninguém pensa em presenças reais, num corpo, numa voz, na luz que narra a sólida materialidade do palco.
Aos poucos, o público apercebe-se de que a noite, aquela noite que caiu de forma inelutável sobre a cidade, é o único protagonista, afinal, a única acção, a última linguagem. A noite é uma escola de pensamento contemporâneo. E naquele exacto momento, no zénite da escuridão, decorre uma aula magistral.
Só na noite (e através do silêncio que a noite propõe de forma incessante e não encenada) se podem observar as qualidades luminescentes dos líquidos que se insinuam por toda a parte, por toda a cidade. Só na noite se assumem os territórios da impossibilidade. Só na noite do monólogo irrompe o diálogo.
Eis quando a cidade se liquefaz.
À memória de Paulo Cunha e Silva
Texto de André Domingues e fotografia de J. Paulo Coutinho
Publicado originalmente em 4 de Dezembro de 2015
Bela homenagem ao um grandes resistentes na protecção dos valores culturais de um país que se chama Portugal.