SEMPRE que o dia está nublado venho para a Ribeira, sento-me numa esplanada e espero que o mundo termine. É assim há mais de três meses. Vai ser assim até que se cumpra o vaticínio. Tudo começou nos finais de Novembro, quando dei com a obra de Steve McGhee. McGhee é um ilustrador e fotógrafo canadiano que se dedica ao fotojornalismo de natureza visionária e apocalíptica. O artista instala a sua hipotética câmara no não menos hipotético último dia do mundo e capta variações sobre o tema da catástrofe em diversos lugares mais ou menos reconhecíveis do planeta. Há de tudo: aviões que esventram uma grande avenida, impiedosos ataques extraterrestres, explosões nucleares, comportamentos climáticos radicais (tsunamis, cheias, vórtices, gigantescas vagas de frio). Facto insólito: a Ribeira do Porto foi um dos locais contemplados pela sua objectiva.

Nesta desmesurada (porque por demais reconhecível / irreconhecível) obra de McGhee é bem possível que a ponte D. Luís I já não exista; abriu-se um incomensurável abismo para onde as águas do rio se debruçam e caem sem apelo; há dois helicópteros que patrulham a área, exaustos e risíveis; alguns incêndios deflagraram no cais; um esplendoroso navio à deriva está prestes a ser engolido pela abrupta verticalidade do pesadelo. O céu, irremediavelmente cinzento.

Na Praça da Ribeira uma nesga de luz ainda dança na estranha juventude de Fevereiro, há vozes que cintilam sob a pele oleosa das antigas mercadorias, rostos do passado que recrudescem. Há pouco, ao meu lado, sentou-se um casal de estrangeiros que, a dada altura, começou uma discussão inspirada e violenta. Vociferam numa língua totalmente desconhecida, distribuem esgares carregados, e depois voltam a disparar em rajada uma boa dose de vocais breves contra o fogo pálido do Inverno, vibrante nestes últimos minutos do dia.

Começo a imaginar até que ponto a sua cólera poderia provocar algum efeito na realidade envolvente. Uma fractura no solo, por exemplo, um pequeno vórtice no rio, um breve deslizamento de terras. Tem de haver uma explicação sólida para tudo isto.

SOBRE O AUTOR: André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 208).

Publicado originalmente em 5 de Março de 2016

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here