SOU um Walt Whitman frustrado, no Jardim das Virtudes, a tentar escrever um poema no céu. São as nuvens que se movem como palavras demasiado livres para se deixarem fixar num só contexto. O vento empurra-as, elas próprias não permitem que as suas partículas suspensas parem de repente, desçam à terra, façam qualquer outra espécie de sentido para além daquele que as concebeu, virtuosas, brancas e leves como rostos de água imprecisa. E eu fico ali, completamente mudo num final de tarde de Dezembro, com o sol a morrer-me aos pés, a cidade a apagar-se lentamente num lamento quase sinistro, carregando às costas as minhas asas de pedra, as únicas asas possíveis, que Isaque Pinheiro criou especialmente para mim e para todos os lunáticos que pretendem tocar no impossível ou escrever um poema no céu. Fico ali, numa desproporcionada desolação de poeta, numa incandescência sem reino, numa aprendizagem terrível, a ver como o rio resiste à língua cortante do vento, a ver como a noite celebra a certeza do frio, à espera que alguém venha libertar-me antes que o ano termine ou que os anjos de Rilke me apanhem a gritar sem voz o princípio da primeira elegia, por ventura a mais perfeita.

Tudo naquele jardim parece inatingível. Para onde quer que olhe, há sempre um elemento que me lembra a finalidade última dos dedos e a minha inépcia, a minha inabilidade, a minha monstruosidade crítica para decifrar o prodígio. Naquele jardim, há, por exemplo, uma árvore miraculada, como a que assoma no poema do Cesariny, uma Ginkgo biloba, a maior do país, com mais de 200 anos e 35 metros. Tudo naquele jardim é vertical e oscila, como uma memória onde a luz espreita pelos golpes do tempo. Tudo ali é magnífico e longevo.

E eu, que idade tenho? Quantos mais anos serão precisos para que as multidões comecem a crescer dentro de mim? Quantos homens terei de matar em mim mesmo, até finalmente encontrar o poeta?

André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 2018) e Rapina (douda correria, 2020)

Publicado originalmente em 5 de dezembro de 2017

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