NO meu sonho, o Palácio de Cristal e os seus minuciosos jardins configuravam uma nação prodigiosa, por onde deambulavam príncipes encantados e mulheres próximas do imaginário divino, que passavam o tempo a escrever a história da sua beleza e a acariciar as suas temperaturas idílicas. Esse pequeníssimo território desfilava diante de mim ao sabor das suas lógicas, ritos e fantasmagorias. O motor alegórico desse país brilhava na biblioteca. Soube-o desde o início. Os livros e os pássaros confundiam-se numa revoada de páginas, asas, indícios e chilreios. A certa altura, pareceu-me ver o coração de Bioy Casares dentro da capela. Lembrei-me de Morel e da ilha. Entre as camélias e as araucárias, uma enigmática libélula zunia as obras completas de Nabokov. A língua oficial deste reino era produzida pela biblioteca e estava disseminada pela Avenida das Tílias; os dialectos mais belos predominavam junto do Jardim dos Sentimentos e, já próximo das 7 magníficas palmeiras da Califórnia, ouvia-se falar o silêncio.
Naquela cálida noite de Agosto havia uma festa na casa do Roseiral. No cimo da torre, que serve de miradouro para a cidade contígua, uma fada tocava harpa nos breves percalços do cabelo. Quando me viu, deixou escorrer um misterioso sorriso e depois ergueu a sua juventude de ferro fundido e lançou-se num voo instantâneo contra os últimos raios de luz que ainda pairavam no céu. À medida que me aproximava do Jardim do Roseiral uma música pastoral reflorestava o meu fascínio. Algumas divindades menores serviam delicadas taças de vinho, enquanto um grupo de poetas se entretinha a capturar o brilho de uma estrela com instrumentos puramente hipotéticos. Quando estava a passar por eles, um desses poetas chamou-me à parte e confiou-me um terrível segredo. Não recordo exactamente o que disse, até porque as suas palavras excediam a minha compreensão e viajavam num código eterno. Pouco tempo depois sentiu-se um grande estremecimento. A terra desprendia-se da terra. Aquele pequeno país destacava-se das suas últimas amarras terrestres e evoluía pelo ar, afastando-se na noite e no tempo. Fui a correr até à ponta do jardim, olhei para baixo e pude ver como a altitude era expressiva. Logo a seguir, apareceu atrás de mim aquela fada outra vez, voltou a sorrir-me escandalosamente, e depois deu-me um violento empurrão e eu caí na graça do abismo.
SOBRE O AUTOR: André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 208).
Publicado originalmente em 4 de Abril de 2016