FIND what you love and let it kill you”, escreveu Bukowski. Foi mais ou menos isto que eu senti da última vez que estive em Madrid. Senti que a cidade me tinha roubado o controlo e dado uma espécie de vidência imprecisa sobre a vida e os seus mais preciosos fundamentos. Senti uma leveza armadilhada por entre o furor das praças palpitantes de promessas, a estrepitosa multidão e a beleza rebelde dos edifícios da Gran Vía, que, como precipícios invertidos, nos convidam para uma queda que ascende até ao céu. Senti que apenas ali podia reconstruir-me e deixar-me habilmente morrer.

Para mim, Madrid cheira a maja desnuda, à pequena devassidão das tabernas, a bomba-relógio, a literatura, a liturgia, à alegria mais negra e mais breve. Madrid é uma cidade que me esventra, desvenda, descodifica, mistifica. É uma cidade fatal. É a cidade mais propensa aos grandes clarões da arte e do sexo. Da poesia à parafilia, do Prado a Malasaña ou Lavapiés, em Madrid podemos fazer arte sem protecção e sexo sem conhecimento.

E esta imperiosa liberdade de certas cidades eleitas paira também sobre o último filme de Gabe Klinger. “Porto” não é só a história de dois estrangeiros unidos por uma paixão que se perde. “Porto” é um retrato de uma cidade que é já capaz de criar os seus próprios labirintos e ardis, de capturar sozinha as suas presas, de lhes dar glória, profundidade e miséria. “Porto” é já um indício claro de que a personalidade da cidade cresceu. Porque, no fundo, é a cidade que dita aos ouvidos dos protagonistas o que eles pensam tratar-se de um sintoma clássico de paixão e redescoberta. É a cidade que lhes dita as falas, as acções, o argumento. É a cidade que os torna videntes. Que os cega. Que os ilumina.

André Domingues (Porto, 1975). É tradutor, revisor, locutor e redactor de publicidade. Autor do livro de contos curtos “Dramas de Companhia” (Companhia das Ilhas, 2016) e de poesia “Tempestade das mãos” (Debout sur l’Oeuf, 2018) e Rapina (douda correria, 2020)

Publicado originalmente em 4 de novembro de 2017

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here