ULTIMAMENTE fala-se muito da noite do Porto. De uma intensa animação que investiu na cidade o seu máximo arrojo; da invenção de um espírito novo que, à falta de uma melhor imagem, procede das práticas rituais espanholas: copo na mão, vida vingada, a lua, como um foco cinematográfico, apontada sobre a desinibida probabilidade dos rostos. Ainda bem que tudo mudou. Ainda bem que os templos da noite perderam os seus limites e se extravasaram para as ruas da baixa, outrora estranhas, escuras e vagarosas. Ainda bem que abriram bares para todos os gostos (e desgostos). Os passageiros da noite podem agora experimentar a sorte dos flâneurs e transitar de bar em bar, abertos a todos os mundos onde lhes pareça provável haver vida, morte, esquecimento ou amor. Podem entrar e sair de cada mundo, numa espécie de zapping in loco, sem darem satisfações, pagarem qualquer tributo ou se comprometerem com a ideologia ou com o culto consagrado na música que arde nos olhos feéricos de quem lá mora. Todos podemos ser príncipes e espectadores, como Baudelaire dizia que seriam aqueles que se dedicassem a investigar a cidade e os seus avatares, as suas subtilezas e os seus monstros.

A experiência diz-me, no entanto, que o melhor noctívago é aquele que, por muito que ande, regressa sempre ao lugar onde a sua própria vida lhe aparece no centro das suas investigações. A uma determinada hora da noite, quando o caos se instalou como nova ordem, só algumas casas parecem deter ainda as tonalidades do fogo. Normalmente são tabernas ou cafés pouco afamados, longe da congestão criminosa das luzes e dos uivos que varrem insónias e decepções. Nesses discretos refúgios, bebe-se o último copo, “le dernier verre” de que falava Deleuze, mas sobretudo olha-se para o interior (o nosso, o dos outros, o de todos), por entre a amabilidade do dono, a respiração dos frigoríficos e o fumo que se desprende do absurdo indispensável da hora.

Texto de André Domingues e fotografia de J. Paulo Coutinho

Publicado originalmente em 5 de Fevereiro de 2016

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