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Rua da Estrada dos Artigos Indefinidos

Rua da Estrada dos Artigos Indefinidos

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QUE o mundo está cheio de incógnitas, já se sabe. Se não estivesse, mais valera que um cristão se deitasse a dormir a ver se sonhava com coisas diferentes daquelas que já estão completamente decifradas para todo o sempre e por isso se mostram rebeldes a novas decifrações – coisas de uma previsibilidade quase transparente mas altamente nociva para a estimulação do neurónio e para a alegria dos dias.

Ao fundo está o triângulo amarelo de uma casa, elemento perfeitamente reconhecível por ser a casa dessa cor e o telhado de duas águas. Logo na frente, um imenso cilindro que sobe aos céus sem se saber onde termina e para que serve. Mistérios da fotografia que não mexe nem um milímetro por muito que a curiosidade do indígena a empurre. Pode ser um castelo d’água ou apenas um oco inútil e negro como muitos que abundam no universo.

Ao lado, outro quase cilindro com um remate de embarcação a fazer peito. Pode ter sido um moinho de vento que perdeu as velas. Em contrapartida, ganhou um marco geodésico. Medir e cartografar, pelos vistos, são mais importantes do que moer cereal ou então é mentira e o cereal mói-se na mesma num moinho eléctrico e está feito.

Pela estrada abaixo do lado em que se alinham portais e passadiços furados para a água passar em grande velocidade, vai uma sequência vertiginosa de muros mais ou menos perpendiculares e paralelos a diversos níveis construídos em bloco de cimento por alguém que não deve muito à perfeição e ao gosto pela obra acabada – aqui e ali, uns tijolos para facilitar o nivelamento dos topos. Alguma tralha espalhada. Ao longo de um dos muros, uma cuidadosa fila de pedras róseas e um verde insecto de loiça. Uma casinha de correio, um intercomunicador, duas caixas para contadores de água ou electricidade, um poste que se confunde com o cilindro gigante por subir pela mesma directriz e está o relatório feito.

Que coisas são estas e porque é que estão aqui reunidas? Sabe-se que os lugares altos são bons para moinhos de vento, marcos geodésicos e depósitos de água. Por ter que se aceder a pontos elevados por estradas declivosas, virão depois ângulos e geometrias complicadas para se resolverem horizontalidades, nivelamentos e verticalidades.

O traço branco descontínuo pintado sobre o asfalto torna tudo isto bastante familiar: pode-se ultrapassar e seguir. Tenha-se no entanto muito cuidado ao chegar lá ao cimo no cruzamento com a estrada perpendicular entre o cilindro e a casa amarela. Passam-se coisas tão prodigiosas que foi preciso colocar o portão principal da casa bastante acima do nível do asfalto. Talvez porque ainda falte uma rampa, talvez por haver ocasiões em que o asfalto tenha marés. Nesta ocasião, seria maré-baixa (sem rampa) mas nunca se sabe quando sobe (a rampa e a maré).

Onde fica?

Porque é que estão sempre a perguntar isso?

SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da EstradaVida no CampoVolta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

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