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Rua da Estrada do tempo das catedrais brancas

Rua da Estrada do tempo das catedrais brancas

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AS CATEDRAIS eram brancas porque eram novas. As cidades eram novas; todas construídas de uma só vez segundo uma ordem regular, geométrica, de acordo com os planos. Por sobre vilas e cidades rodeadas de muralhas também novas, os arranha-céus de Deus dominavam o campo. Fizeram-nas tão altas quanto possível, extraordinariamente altas, actos de optimismo, gestos de coragem, sinais de orgulho, prova de maestria. Começava um novo mundo, branco, límpido, alegre, claro e, sem hesitação, esse mundo novo abria-se como uma flor entre ruínas. Deixaram para trás todas as formas reconhecíveis de fazer as coisas. Em cem anos a maravilha estava cumprida e a Europa tinha mudado. As catedrais eram brancas.

Escrevia assim Le Corbusier em 1937[1]. Este empacotado de fraseologia delirante que lhe extravasava da utopia e do excesso visionário bem podia, com alguns acertos, adaptar-se ao Alentejo das campanhas do trigo do tempo salazarento que, inspirado em Mussolini, iria pôr a maquinar a modernização no Celeiro de Portugal. Então cá vai:

Os silos eram brancos porque eram novos. O regime era novo; construído de uma só vez segundo uma ordem corporativa, geométrica, de acordo com os planos. Por sobre as searas sulcadas de linhas férreas, os arranha-céus do pão dominavam o campo. Fizeram-nos tão altos quanto possível, extraordinariamente altos, actos de optimismo, gestos de coragem, sinais de orgulho, provas de maestria. Começava um mundo novo, branco, farinhento, latifundiário, um mundo novo que se erguia sobre o adubo químico, a ceifeira-debulhadora e a exploração do trabalho. Não deixaram para trás essa forma habitual de fazer as coisas. Em vinte anos o Alentejo tinha mudado. Os silos eram brancos.

Assim é a modernização. Vive de visões sobre-humanas, de maravilhamentos técnicos, de discursos totalizantes e poderes que lhes deem forma, mundos mais que perfeitos, imaginários inconscientes e realidades futuristas, tudo para inventar de novo o homem novo.

Stop, virar à direita. Hoje as catedrais estão vazios. Basta ligar-lhes um teclado de órgão e uma boa pneumática e daqueles tubos altos sairão respirações e sonoridades como nunca se ouviu. Seria o novo cante alentejano.

Não podendo ser, encha-se de água, de vinho, azeite, amêndoas ou ópio que logo virá o povo em busca dele.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Le Corbusier (1937)  Quand les cathédrales étaient blanches, Plon, Paris.

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